quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Para o Leo

Ele era, assim, discrepante. Mesmo para os padrões mais subterrâneos. E a falta de reciprocidade me obrigava a escrevê-lo, agora que não há mais as luzes, mais as cores, mais os bichinhos que passeavam em doses cada vez maiores daquelas balinhas salvadoras! E pensar que eu tomava refrigerante... E que ele não bebia. Apenas a água, que a custo tornamos natural, eram tantas as bolhinhas! Não sei por que há empresas que insistem em fabricar uma água assim... Que fabricassem suco então, ora essa!

Bem vos digo que as minhas mãos já eram nuvens... Minha coca era adulterada. Pois que insistem em legalizar tantos e tantos tipos de droga! Os donos do bar vendiam droga destilada para mim, mas o que realmente dava lucro para eles eram as drogas fermentadas. Mas eu não gosto. Prefiro coca. Adulterada. Prefiro, ainda, acima de tudo, a alacridade. Imagina quem se droga por motivo outro que não a felicidade?!... E o mais estranho de tudo era que as minhas mãos já eram nuvens... Não foram humanas o bastante para desalinhar aqueles cabelos que ele prendera a fim de assegurar ordem diante da existência de mais uma noite como tantas outras quaisquer.

E ele sabia como agradar a uma menina tão sozinha. No alto! Tinha certeza de que eu poderia conquistá-lo por uma noite – apenas. Ele me deixaria depois – ainda mais sozinha e encantadora!... E é por isso que pedi a ele para que repousasse as suas mãos humanas ao redor do meu pescoço. Era tempo de ele me fazer uma nova trança. E as mãos humanas dele eram – pasmem – femininas! E trançaram meus longos cabelos, não sem antes cobiçarem a minha cintura, bem me lembro. Aquelas mãos, as mais belas por serem compatíveis ao céu embriagado.

Ah, eu poderia ter oferecido a ele outras plantas!... Ele rejeitaria apenas os cogumelos. Pois bem sei que os cogumelos não existem fora da floresta. E ele não poderia me levar até lá! Pois já éramos a floresta. Ele realmente sabia como me agradar. Sabia conversar com as nuvens, e entender os delírios das nuvens, e esperar que minhas mãos recobrassem a humanidade. O que, de fato, não aconteceu antes do retorno. O retorno ao verde da floresta! Retorno aos cogumelos etéreo-destilados. Vida na mais pura fase de decantação... Ele fumava. Aguardo o retorno do homem cujas mãos femininas foram capazes de trançar os meus cabelos e atravessar as veredas da eternidade.

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

O homem da floresta

Não fossem aqueles momentos de contato mais intenso com o vazio refletido pela vida, não me haveriam forças para suportar tantos dias sucessivos, que existem um a um sem ao menos combinarem-se a algo que estaria, justamente, entrecortado pelo reflexo vazio de mais um dia de vida. Mais um como todos os outros, não fossem aqueles momentos que me dedico a conversar com as árvores. E conversaria com as folhas que caíam sobre os meus cabelos, até que ele chegasse e começasse a fumar.

Pois me seria muito fácil olhar e descobrir que um homem estava ao meu lado. Quem seria, tão perto de mim? Pude ver os cabelos caindo sobre os ombros. Em pé a endireitar, aprumar, espreguiçar-se. Os mesmos movimentos de outrora. Não era aquela a nossa primeira vez. O mesmo ritual ao encerrar mais uma dose de seu vício diário.

Ao sair, ele poderia ir e encontrar-se com um bando de amigos, o que me seria uma morte muito lenta e aterradora. Poderia voltar ao trabalho, caso tivesse um. Poderia ir para a aula. (Não!...) Poderia escrever relatórios sobre o poder curativo das plantas. Ou ainda, sobre as flores e folhas que se podem ou não podem fumar. Poderia despedir-se de sua mulher e viajar para o Himalaia. Talvez ele pudesse levá-la, por que não?

O fato é que, seja lá para onde ele tenha se levado, eu não saberia dizer o seu rosto, pois tudo quanto vi no plano da realidade foram os seus cabelos caindo sobre as costas. Ele tinha um rosto imaginário cheio de nuvens que eu preenchia para poder lembrá-lo como o retrato de um homem que existiu em minha vida.

E esses dias sucessivos, que me chegam sobrecarregados de tantos acontecimentos importantíssimos, e ao mesmo tempo, todos eles dispensáveis. Pois se encolhem diante do nada maior, fonte da vida refletida, a soterrar uma multidão furiosa de muitos e tantos dias. Até que o tempo parasse. E então, um encontro casual com o homem da floresta.

sábado, 15 de dezembro de 2007

O Elo Perdido

Ela me insultava, e era uma vilã muito violenta. E ela lutava por um mundo desigual, pois prezava, acima de tudo, a originalidade. E pregava contra a rebeldia. E contra a desordem desajeitada dos enjeitados. E ela também me usava todas as vezes que fingia fazer parte da minha vida! Sua importância crescia à medida que o distanciamento derradeiro aumentava os passos de sua marcha macabra e tendenciosa.

Enquanto isso, eu cuidava de arrumar um namorado pra ela. Pois eu sei muito bem que toda menina que quinze anos sonha encontrar um homem pra passear por aí... Um homem de uns 16, 17... Mostrável ao público e à alma... Aplicável aos seus olhinhos de goiaba madura! E ele seria alto, magrinho, de cabelinhos caindo sobre o rosto angelical... E ele adoraria os mesmo desenhos dela, e ela aprendera comigo a amar o excêntrico das melodias avassaladoras. (Um músico árabe ancestral já definira melodia como um conjunto de notas apaixonadas entre si).

Convoquei o nobre enamorado para ser o meu jovem servo. Ele seria uma ponte entre nós. Entre mim e ela – ele. A ela os primeiros suspiros e as primeiras carícias da mocidade. A mim as informações necessárias à configuração de um inquérito policial! A ele chamarei Acácio. E a ela, Brumalina.

Acácio e Brumalina – leria-se no convite da formatura. Pena ela já ter se formado antes mesmo de encontrá-lo!... Entretanto, todo o jogo é perigoso. Acácio se apaixonara! E ela, não fosse o medo do desconhecido, também se entregaria. Amavam-se!... Acácio me entregou a ela, e fui excomungada. Essa não!...

Não desisto. Hei de encontrar método mais eficaz para reencontrar Brumalina... E para reconquistar a coragem de Acácio. Eu lutava para que a ponte fosse permanente e devidamente instaurada. Cansara-me do suplício individualista, repleto de reclames e de tentações misantrópicas... Sublime a maioridade!... Quero mesmo é a paz universal!... Ah, se fosses minha, Brumalina... Eu jamais teria conhecido Acácio!... E até quem sabe eu já seria uma modelo.

sábado, 24 de novembro de 2007

A Festa

A tal festa era das mais discrepantes, porque as meninas de quase quinze já eram mulheres, enquanto os seus pares eram ainda menininhos mal-formados. No máximo alguns deles já poderiam ter alguma noção a respeito dos torneios do mundo... Eu era, entre elas, mulherzinha - mesmo ao carregar um peso muito mais antigo do que o daquele representado pela minha idade. Não importa. Mesmo depois dos 15, eu estava divinamente rosa. Despida de colares, de maquiagem, dos pesares tortuosos da vida...

Ele me olhava, me olhava, me olhava... Por momentos, até pensei que talvez o meu vestido rosa tivesse sumido!... Mas ele estava lá, colado ao meu corpo. Tenho certeza de que eu era muito rosa, apesar da expressão forasteira aos sorrisos e paparicos serpenteados da noite. E ele me olhava, me olhava ainda... Eu sabia, sabia o que era aquilo: Ele iria me adotar. Aquele homem percebera que ele era, desde há muito, um voluntário. E me adotaria, cuidaria de mim, conversaria comigo, e me suportaria em fase tão crucial da vida!... Ele seria o meu homem, o meu pai, um deus profano e necessário em meio a todo esse abandono da Terra...

Ingênuo engano o meu... Ele me olhava, ele me seduzia... E ao invés de concretizar os meus delírios da paternidade, ele seguiu os rastros das pétalas vermelhas roubadas que eu espalhei pelo chão... Para marcar os meus últimos passos depois de tão doce despedida. E ele rompeu a simplicidade da minha homenagem silenciosa. Apertou as minhas mãos, e me induziu a analisar a sua expressão inebriada. A ver o seu sorriso de muitas e perplexas intenções denunciadoras. Ele queria que eu retribuísse a tempo os seus sacrifícios noturnos.

E entendeu que, eu, então, nada mais poderia fazer, além do embaraço espontâneo que era próprio dos contornos oculares da madrugada. Olhar de quem já dorme sem nem desconfiar... De quem se perde por não entender o que fazer com o acaso que já partia para o plano atemporal da fantasia... Ele se foi, enquanto eu saía. Para só voltar como a lembrança de um homem velho, sedutor e brincalhão... Não o sábio ermitão que nos oferece a luz e o conforto de muitas montanhas longínquas e despovoadas, mas sim o redentor que não se esquiva dos prazeres possíveis e misteriosos do acaso. Pois eu sei que ele ignora o significado de qualquer tentativa fracassada de pretensão...

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Neutro

Ela me pisa, me perfura, me provoca. E depois me machuca, me humilha, me detona. Ela também me apedreja, me tortura, me aprofunda. Depois ela me afoga, me cega e me vomita um monte de palavras sujas. Ela coloca pedras dentro dos meus olhos, e eu vou ficando cada vez mais inchada, mais cansada, mais acabada. Ela, às vezes, também me envelhece. Ainda bem que ela é mulher, pois se ela fosse homem, tenho certeza de que eu a amaria muito mais fundo, e desejaria me perder dentro dela. Se ela fosse homem, ela seria a minha perdição, pois eu desejaria ardentemente odiá-la, pois estou exausta de amar aos meus inimigos como a mim mesma. Ainda bem que ela é mulher...

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Merengue

É que às vezes isso me dói dentro da carne: Ter de manusear tamanhas facas durante todos e tantos dias. Sou órfã há algum tempo. Foi acontecendo, não se poderia evitar. Quem sabe uma fatalidade. Continuo a intuir a presença de meus pais, e eles continuam vivos. Mas eles não se entendem entre si. Mudei-me para o meu pensamento. Meus irmãos estão semimortos. Às vezes ainda tento visitá-los, muito raro, mas acontece. Eles, de quando em quando, também tentam me visitar. Mas eles não se entendem entre si. Acabamos por ruir certas sutilezas do passado. As palavras não existem mais em sua forma tradicional. Os diálogos são amontoados de palavras muito modernas. Elas são um fetiche violento, quase um abuso. São insultos silenciosos e cheios de pretensões muito perversas. E pensar que o homem vive em busca de amor! Como pode se os homens - eles não se entendem entre si.

E é que às vezes isso me dói dentro dos sentidos: Ter de acatar tamanhas diferenças todos e tantos dias. Não entendo o porquê das peculiaridades nossas, tão mesquinhas, sufocadoras. Como a de tantos outros homens que não se entendem entre si. E entre eles as mulheres, tentei aproximá-las. Achar estratégias em comum, contar as nebulosas. Mas elas não se entendem, não se entendem... Relembrei com certo pesar a tortura de abandonar o útero materno. Segui adiante, voltando-me ao oposto de mim. Eles, os homens, me adoram. Por toda uma longa noite de vertigens ilusionistas. Mas não há como estender tais sentimentalidades para além do amanhecer: Os homens não se entendem entre si. E a verdade é que eu tampouco os entendo. E eles, não se entendendo, sentem o correr das horas como a promessa de uma vida inflamada e duradoura. Como se a falta fosse em si, o laço acolhedor da humanidade. Mal sabem, eles, enquanto dormem... Que os homens não se entendem entre si.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Distopia

Era uma vez quando eu era uma abelha. Uma abelhinha... Pequena, amarelinha, listras pretas. Eu não entendo nada de Biologia, pois no tempo eu que eu vivi, as abelhas não precisavam freqüentar o colegial. Mas o fato é que eu conhecia muitos outros insetos. E uma vez, um papagaio me contou que as borboletas eram pássaros, digo... Não sei bem o que é uma borboleta... Que são aves, que são pássaros que passam muito tempo pra nascer. Que elas vivem um tempão presas num casulo escuro. E que depois de muito tempo lá, elas saem e ficam bonitonas, com aquelas duas asinhas incríveis!... Você já sabe o resto... Elas têm um dia apenas de vida! E depois disso a Morte. Depois do grande dia pelo céu das flores...

Muita gente já falou sobre isso. Já escreveram poemas, romances, contos... Já fizeram muitas músicas também. Inventaram-lhe as mais finas teorias. Entenderam-lhe a simbologia. E dos símbolos a alegoria. Sem contar as metáforas, os arranjos, os saraus, as dedicações pessoais de imenso afeto e proteção... Já pensaram no paradoxo de sua condição: Imaginaram os sofrimentos e as angústias enfrentadas pela larva em tão jovem agonia... Imaginaram também o contrário: Quem sabe o casulo era assim, uma casinha intimista. Pensaram, ainda, a alegria do seu último dia. A sensação do primeiro vôo e o pousar delicado sobre as flores e as folhas e as águas e o chão.

O que eu não sabia era que, na colméia de Dona Cacarocha, colméia essa em que eu vivia, todo mundo a borboleta conhecia... Conheciam a dor do nascimento dela, conheciam a delícia da sua vida derradeira e fugidia. Comentavam-na a brados, contavam-na aos seus filhos. A saga se expandia, se alastrava. E, sutilmente, alienava toda uma população. A verdade é que as abelhas todas já estavam estragadas. Viviam desses boatos. Boatos de papagaio, boatos do Egito. Repetiam a história enfadonha como máquinas ensolaradas. Seu sentido há muito se esvaziara. E de fato, as abelhas não sabiam quanto tempo viveriam. Elas não sabiam!... Mas guardavam em suas almas o mistério da história linda e trágica das vizinhas coloridas.

Quando uma abelha caía e se machucava, nada as outras faziam. Nada além de contar-lhe a história longuíssima e louca, o pesar e o delírio de uma borboleta que nem sequer conheciam. Acontece que não se consola uma abelha com história de borboleta. Há tempos eu sentia falta de ter o direito de contar a alguém a minha própria história... As abelhas só tinham ouvidos para as borboletas. Eu caí e comecei a sangrar. E contaminei o meu mel com o vermelho das minhas células. Até que a Lua alta apiedou-se e iluminou o meu corpo. Foi então que as abelhas perceberam que eu morrera. E me enterraram no profundo do abismo matutino, após as devidas bênçãos e orações. Pouquíssimas lágrimas. Nenhuma aflição. Uma calma desoladora: O mel que eu criara não morrera. Eu sabia que ele ficaria gravado junto ao meu sangue de abelha. E então o mundo poderia se acabar. Em paz... Pois eu sabia que a grande Roda não continuaria a rodopiar assim em vão.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

A noite mais triste da primavera

Sei que o mundo iria se acabar. Pouco faltava: E ela, lá, sentada, não saía do sofá... Estava cansada por causa de mais um dia de trabalho. De fato, tudo mudara, e sua nova vida a esgotara terrivelmente. Talvez a ponto de, ao fim do dia, ela se esquecer do pulsar do mundo. Sentada no sofá - pois a sua casa abrigava muitos cômodos - confinava uma grande família: Distribuídos em seus quartos gelados. E ela estava no sofá. A cozinha já vazia, nem mesmo uma broa. Quanto mais um bolo... Todos a deixaram lá, sentada. Precisavam voltar aos seus quartos o mais rápido possível.

Na verdade, ninguém sabe o que é sentar naquele sofá enquanto o mundo está a se acabar. Não se sabe, apesar da nossa tamanha perspicácia. Apesar da sutileza dos nossos passos após o jantar. Dos nossos rastros silenciosos em direção a tantos outros aposentos. Do nosso descaso, do nosso abandono. Gente abandonada que, em resposta ao abandono resolveu abandoná-la, gentilmente, no sofá. Sem nem mesmo avisá-la. Sem fazê-la desconfiar do fim do mundo. Sentada, a tecer outros tempos, outros muros, outros murmúrios. A pensar que toda a verdade residia em sua própria criação. Não suspeitava que o seu passado era inexistente e não nos pertencia.

Enquanto voltávamos aos nossos quartos, esquecemos de reconstruir as ruínas primordiais. Hesitar, só em tempos de paz. Quem é louco de fazer da guerra um caos ainda maior? Pois então – pensamos – que assim seja. E distribuímos entre nós munições diversas e com cheiro de salsa. A guerra bem temperada, a guerra política. A guerra das modelos, das mulheres. Também a guerra dos genes. A guerra da cautela e do ausente senso de premonição. Tranqüilos diante do fim. Um silêncio cada vez mais sentencioso invadia as janelas escancaradas. Um silêncio que era guardado no ardor de muitas discussões, de muitas gargantas, das rodas malucas e roucas a girar desordenadamente. Das rodas suspensas, desligadas das asas indomáveis do destino.

A presença do fim era sentida em silêncio. Num silêncio camuflado pela dor e pelos rancores acumulados não se sabe nem como, nem onde. Inúteis os porquês. Perdida nos escombros a origem de tal semente grandiosa. Ela estava sentada e imóvel. E eu sei que os seus olhos guardavam um amor muito puro. E eu sei que esse amor foi o resultado de muitas batalhas. Talvez todas elas perdidas. Até que, novamente, a voz. A voz maior do silêncio, a impor os seus atritos no ar sufocante de novembro. E ela, a refazer, com todo o cuidado, as glórias perdidas do passado já mencionado. Do passado que ainda não existiu. Projeções de um tempo desconhecido...

Explode uma granada: E ela deita, mecanicamente, ao lado dela mesma. E se põe a balançar em pensamentos incomunicáveis aos aposentos gelados. Os quartos não podiam entender a pureza do que ela sentia. Ela, que após tantos tumultos, resignara-se ao pior de todos os pesadelos. E suportava aquela calmaria assassina a tirar-lhe do corpo os últimos sopros de vida. E os quartos estavam muito gelados, apesar de todo aquele calor, que aumentara ainda mais depois da chuva. E ela esperava, incansavelmente, pela volta de seu passado. Mas ele não poderia voltar, pois o passado que ela criara ainda não tinha existido. Até que, então, o fim do mundo chegou. Mas ela não pode vê-lo, pois nesse instante, as luzes do sofá se apagaram. Era escuro, e ela já estava dormindo.

domingo, 28 de outubro de 2007

Assimetria

Os garçons, eles eram tão bonitinhos... Vários deles, assim dedicados, de pele definida, e de traços bem marcados pela aura feminina. Com a barba bem feita. Mas tenho certeza de que um dia sem recursos artificiais os transformariam em homens exageradamente sedutores. Trajes adequadíssimos, cabelo impecável. Nem um só fio fora do lugar. Tão arrumadinhos! Polidos, tão bem educados... Sorriam muito mais do que o sangue derramado em tantos pratos! Pois era, a propósito, um paradoxo... Ver aqueles olhinhos adocicados me servindo chouriço...

Ecologia

- Quantas vezes eu já te disse pra não jogar o papel higiênico dentro da privada?
- Mas mamãe, por que não?
- Você está entupindo tudo! Deixa o seu pai saber disso pra você ver...
- Mas...

Algum tempo depois:

“Ao jogar o papel higiênico biodegradável no vaso sanitário, você está evitando o transbordamento dos aterros sanitários e contribuindo para o controle de contaminação da água”.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Quem sabe as flores

Ao olhar para os meus pés, percebi que estavam cobertos de flores. Por tanto tempo, eu pisara em flores... Desmanchando-as, abrindo-as, estilhaçando-as até a morte. Esquecera-me de lembrar a ecologia. E padeço por ter pisado na fonte da vida. E nada posso fazer.

Provavelmente continuarei a pisá-las, pois mesmo agora não consigo vê-las. Não conheço o segredo das flores. Não sei o mistério do orvalho que cai sobre elas, despertando-as para a manhã. Todos os dias.

Tudo bem – compreendo – talvez elas durmam no inverno. Mas não há mais inverno.
E as flores de repente estão mortas. (Pois o homem, você sabe...) Às vezes não posso mais vê-las. (Por ter destruído a demarcação das estações). Meus pés estão cobertos de flores...

Irmandade

Ela me copia. O tempo todo. Finge que as músicas de que eu mais gosto são as suas preferidas. E ainda tem coragem de dizer que é o contrário. Ela estraga todas as coisas de que eu mais gosto quando ela me copia. Porque eu tenho que achar algo novo todos os dias. Pra tentar me separar dela. Pra me individualizar. Mas não dá... Ela também é bipolar.

domingo, 21 de outubro de 2007

Filosofia

Na Catedral tradicionalíssima da Saúde, em frente ao metrô Santa Cruz, às 18:50h do dia 20 de outubro de 2007.

Khalyl diz: Cadê o Guilherme? Só faltam alguns minutos...
Cíntia: Já tô preocupada. Cadê ele? Ele já tá chegando?

Os noivos. Os músicos. Entre eles, Guilherme, o portador oficial das clarinadas.
Os clarins são instrumentos que podem belamente anunciar a chegada da noiva e conduzi-la até o altar. Também são muito importantes para mim.

Cíntia diz: Será que ele vem?!...

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Óculos escuros

Após o uso ininterrupto do par de óculos por 17 anos, Joãozinho se apresenta na escola com os olhos despidos. Por 17 anos Maria rejeitara todos os seus carinhos.
- Bom dia, Mariazinha!
- Bom dia, João!
- Nossa, por Deus do céu! Que cara é essa?
- Onde estão os seus óculos? Você fica tão diferente assim!...
- É mesmo? Fico parecendo o que? Mais bonito? (e mais se aproxima de Maria)
- Vem com essa não, que eu sou uma mulher de respeito! (e o afasta)...
- Não vou mais usar. Nem mais um dia. Vou não...
- Usa mais não, é?
- Nunca mais! Tá decidido...
- E por que não, ora essa agora! Acaso já enxerga sem eles?
- Olha, vou te dizer uma coisa: Vejo muito melhor agora...
- Puxa! Isso quer dizer que você não é mais míope! Está curado, João! Que raio de remédio foi esse?
- Tem remédio, não, menina... Remédio nenhum...
- Mas então só pode ser uma coisa! Você rezou feito um louco, não?
- Ora, essa! E desde quando sou dado à religião?
- Pois devia, viu! Eis aqui um milagre!...
- Milagre nenhum, Maria. Eu acordei e percebi que não precisava mais dos óculos pra enxergar. Simples assim, foi só acordar... E já não precisava mais deles!
- Virgem Maria! Que loucura!...
- Mas, veja bem, menina... Olha só: Você não está entendendo... Eu continuo míope. O que eu vejo agora não é nada que se possa ver, assim fácil... Talvez você, que sempre enxergou tudinho sem precisar de óculos, nunca tenha visto coisa igual...
- Assim você até me assusta, criatura!!! Quem fez isso foi o Diabo. (faz o sinal da cruz)
- Mas deixa disso, ó mulher! Meus novos olhos me fazem ver as coisas mais lindas que eu nem imaginava em sonhar...
- E que coisas são essas?...
- Posso ver cada detalhe do seu corpinho lindo... (e coloca as mãos na cintura dela)
- Ei! Pra lá, João! Mentiroso... Você é míope. Pode enxergar o que te está perto. Novidade nenhuma, isso não...
- Pois então vou te dizer o que eu realmente vejo!
- Pois bem, pode dizer!
- Vejo a Morte. Em mim, em você, no mundo... Todos mortos. A única diferença entre você e eu é que você não sabe que está morta. Eu já sei que morri. Desde que me tiraram do útero caudaloso de minha mãe... Estamos mortos, todos mortos, Maria!...
- Deus... (vertigem, mal pode sustentar o corpo)
- Deus também está morto. Depois de criar o homem, Ele morreu. Foi a sua última criação.
- Agora você já sabe...
- Sim, eu já sei!... E quis te contar depressinha...
- Mas eu já sabia...
- Já?
- Já... (Maria mostra a João o que guardara por todo esse tempo por debaixo do vestido: Um caixão. Dentro, Maria dormia, com o rosto encantado e os cabelos cobertos de flores... E entrega a João o atestado de óbito, datado com o símbolo do universo)
- Então já podemos ir...
- Vamos, então...
(Deram as mãos e caminharam até os horrores do Paraíso)

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Quando eu fiz ele cair das nuvens

O chamado fora atendido. Pois embora muito tempo tenha se passado, ele estava perto. Do meu lado. Como se os ponteiros não tivessem nunca mais existido por quase uma longa e impiedosa semana. Só faltou eu tropeçar nele. Estava em todos os lugares. E como ele estava... Eu vi! E pasme – sozinho. S-O-Z-I-N-H-O. De propósito. Só pra me provocar, pois sua blusa novamente tinha dois bolsos, um de cada lado. Olhar taciturno e preciso. Pra dentro da vida. E o sorriso. Um tantinho embaraçado, é verdade... Movimento amortecido dos lábios, dos músculos, das veias. E eu vendo tudo isso na minha frente, ah, Deus meu... Era demais para uma mulher tão pequena. Me confundem até com criança... Posso eu ver a vida sem censura?!... Já faz tempo que não se respeita o “proibido para menores”. Mas eu era velha demais para tantas novidades.

E o sorriso. De novo. Um aceno... Bem sofrido. Com vontade. Eu só podia era derreter. Desejei não estar de blusa. Desejei nunca saber o que era uma blusa. Só porque eu passava com pressa. Pois nessa vida não se pode parar: A gente acaba derretendo. Que nem calota polar. As mãos, elas ficavam escondidas como forma última de provocação. Assim já era demais. Agüentei mais não! Corri até as estrelas. Bem rápido. Voltei antes mesmo de ter saído. Pra não me acusarem de feitiçaria. O mundo já está cheio de charlatões. Em todas as seções, em todos os corredores. Em segredo. Nas criptas do meio da semana. Onde o nome outrora apagado é revivido para honrar o compromisso primeiro da renúncia.

E eu sabia que a verdade era a desgraça. Nada disso que pensaste. Bah! Fundo do poço, mas que nada! Passarinho com seu canto me tirara de lá. Uma dor insuportável, que crescia descendo pelo corpo. Eu sabia que poderia ser feliz a qualquer momento... (Iiiiih – passarinho assassino da clausura). A meus pés, o homem delicado. O homem dos graves Mistérios. Ele que nascera da terra. E crescera para mostrar o pêndulo da vida: E eis que estava lá, o tempo todo... A felicidade a qualquer momento. Eu poderia... Faltava muito não. Mas então, o dia acabou. Ele estava muito assustado. Só eu sabia. Apesar da sua calma. Do seu pesar. E do meu cansaço... Igual ao fim do dia... Ao meu lado, eu poderia (...) Passarinho se foi cantando, Iiiiih. Tem mais não.

domingo, 30 de setembro de 2007

Quando eu quis o dentro dele

Era um fim de semana, frio e com sono. De chuva rasa. Mas eu acordara para o trabalho. Ansiava por aquelas horas de luz: Passaria adiante o pouco que a vida me ensinara custosamente devagar. E assim o fiz, com a sorte diária que pregava a consciência em oposição à mente e ao pensamento. E eu dissera de forma menor o simbolismo da Roda. E a Roda era energia a vibrar por meu dia pequeno. Saio salubre ao sol que se acaba em sal e saia opaca. Usaria as botas encostadas. Cano alto rumo à chuva. Rumo ao cansaço de cada passo em direção à cama. E então eu me acabaria. (Sozinha?!...)

Até que ele chegou. Na calçada. Bem sei que estava parado e bem calçado. Sustentando uma geração de sombras segredadas pela terra. Mas era uma chegada. E eu apenas disse o “oi” enfeitiçado. Ele respondera com o olhar de quem compreendia a indiferença dos amores esquecidos. Embasbacada... Pelo que eu não poderia, pelo que não se deve. O intocável era o bastante para que eu me apaixonasse pelo homem delicado. Encostado junto à porta dos meus medos mais antigos. Mãos no bolso, entendendo a extravagância da minha solidão. Não pude abandonar aquele que me chamara para que o mundo acontecesse escondidinho. Em silêncio, com a calma de alguns segundos. Discretamente.

Não era ele meu antes disso. Foi assim que eu me apaixonara pelo outro. Ao piscar dos olhos abertos. Pois o outro já me era conhecido... A voz voluptuosa, os gestos encobertos. O homem dos graves Mistérios. Mas surgira da terra. Era a amiga que não acontecera, e o amante que eu perdera por vergonha do meu corpo. E ele me olhava. Por todos aqueles segundos. E eu temia perder a noção das boas maneiras. Mas entenda: Tudo isso foi depois dele dissipar-se com a bruma, com a neblina. A mim restou a chuva, e a certeza de um nome que só poderia ser confirmado com a presença de quem não sabe a diferença entre o convite e a compulsão. Os limites eram desfeitos, e eu sabia que as palavras seriam as mesmas, e em todas as estações. E pensar que eu mal pude olhar para trás.

A fada rosada do lago

Era uma vez, um lindo menino pequeno de 10 anos e 7 meses. Ele morava sozinho numa linda choupana pequena, geograficamente localizada na latitude 207, longitude 428,3. Um lindo e pequeno bosque rodeava sua modesta e aconchegante habitação. O menino tinha medo do escuro, e por isso não tardava a dormir. Temia os domínios da Lua. Mas à noite ele sonhava com o Sol do meio dia. E então resolveu sair. Para o gramado dos unicórnios. Sob o sol, o alento. Era tudo muito lindo, e não iria ele se perder, pois o bosque era tal como um jardim pequeno.

Caminhando, o menino encontrou um lindo lago. Era molhado de água doce e azul, e também era pequeno. E então ele resolve colocar os pés já desnudos na água. Mas a água, com o toque dos seus pés tornou-se turva, e o céu escureceu, e o menino começou a chorar. Voltou correndo para a choupana. Logo adormeceu, e em sonho uma fada rosa, linda e pequena lhe disse para não ter medo do lago que o criara. De manhãzinha, o menino, ainda assustado, e ainda lindo mesmo assim, retorna ao lago, pois as fadas lhe indicavam o caminho. Outra vez tocou a água com os pés pequenos. E a água escureceu, e o céu se manchou de preto, e choveu um sal gelado. Em profundo desespero, o menino voltou correndo espanto para casa. A choupana em desalento o acolheu.

Logo o sono, e a fada rosada de seus sonhos. E então, a voz: “Eu sou o seu sonho. O sonho que alimenta a sua vida. Deverás voltar ao lago”. O menino amanhece em sobressalto, mas logo encontra um lindo amuleto que reluz rosado. E em estado de deslumbre reconhece o presente singelo de sua fada. Veemente em sua fé e firme em seus passos, o menino retorna alegre ao lago. Sem mesmo hesitar seus pés encontram água, e a água é limpa e fresca. E o espelho assim reflete a sua imagem. E dela surge a fada linda, bela, tão pequena em laços, rosa. E ela toca com as mãos pequenas o amuleto que o menino fortemente segurava.

Seus olhos eram água. O sal era a alegria de uma vida que surgia inquietante. Pululavam-lhe as pupilas pequeninas. E então, as mãos de sua fada crescem escurecidas a sugar-lhe as energias. E mais rápido que amendoim torrado, toda a figura dela se transforma. O lago violento e turvo dá forças ao monstro horrendo que outrora fora o Sol de um dia ensolarado. Céu escuro, e a fada era um polvo imenso que lhe tingia os pés de cinza, tentando tragar-lhe para o abismo. O menino era lindo até tremendo. Pois nem mais chorar podia. Pedia pelo Sol, por um milagre, por uma lágrima. Olheira qualquer, mas que nada. Parava. Parado, no nada. E o nado do polvo o fez delirar mancando. Até que o mundo, e tudo, e todos, depressinha deram de ser um tremendo e absurdo apocalipse: O menino em sua cama se partia. O mundo era agora todo feito e decorado. De algodão rosado e doce de esplêndida candura. E foram felizes para sempre.

Carta a mim mesma

Após os muitos e longos anos de domínio externo de minha província, enfim venço a batalha revolucionária e conquisto a emancipação. Dona dos domínios do mar. Tranquilamente vazia. Não por estar no topo, mas simplesmente por estar. Mesmo antes da obsessão pela aquisição de grandes terras. E sem mais a acrescentar. Não há os velhos bons tempos. Eles nunca existiram. Foi-se a neurose do ser dividido. Recordar é reviver o inferno do passado. E prever é utopia infundada da infância. Carpe diem... A colheita da falta. Colheita de torcicolo. Toda torta. Colheita do vento. Que sopra ao contrário, bagunçando braços e cabelos. Não há império que resista. Vazia e dona do mar. Tenho a ampla visão das corujas. E a inatividade compulsória de larvas e tentáculos infecundos. Do líquen, do abismo cortante do mar. A luz pacata e fria dos recortes e trevas abissais. Da amplitude fechada dos poros. E assim eu vivi, reinei e morri. Sem túmulos nem inscrições. Espontânea, recusei-me a comprar o amor perturbado daqueles que seriam os meus semelhantes. Para honrar um lugar e uma espécie. Por respeito à distorção irreversível dos corpos e das horas. Por viver um sonho desfocado. E por ter adivinhado o alívio dos segredos da morte. E que durma em paz.

Em nome da liberdade,

Ana.

Vanessa

Eu morava num castelo alto e encantado, numa vida sofrida e trágica de rainha. Vivia perdida no jardim de minhas próprias torres. O rei fugira, a princesa se matara, o príncipe morrera. Eu, rainha de meu próprio castelo em ruínas tranqüilas após todos esses anos que se passaram devagar. E mesmo assim eu não enlouquecera, pois a culpa já não me era essencial.

Cada dia era a eternidade de uma depressão desbotada. A mim chame Vanessa, filha dos ventos, mensageira de tua morte, e portadora de minha própria habitação: Pois veja que o castelo era meu. Castelo alto e encantado que me pertencia desde os tempos mais remotos. Escuto com tédio interessado aos ecos de meu jardim. E me perco entre os sons dessa pequena floresta de sonhos e de tentações. As cores de suas asas... As asas da borboleta que pairava sobre as flores de algodão.

Não recebia cartas, nem telefonemas. O computador quebrara, já era tempo, pois eu precisava mesmo era viver o Sol de meu jardim, localizado dentro de minhas torres, todas constituintes do meu castelo. Castelo alto e encantado que era meu. O rei não gostava de cartões postais, a princesa envaidecera e não comia, o príncipe esquecera de voltar. Eu, rainha insípida e morna e frígida e fria, insistia em reinar.

Se te conto o meu relato, não é para te emocionar, pois eu já perdera os antigos sentimentos humanos. A alegria convertera-se em alergia profunda à vida. Mas entenda que não se tratava de melancolia. Eu não era alegre nem triste nem poeta. Era rainha, rainha apenas – rainha das florestas, rainha das torres, rainha e proprietária de um castelo alto e encantado. O rei descobrira que sobrevivia, a princesa se entregara à madrugada horrenda, o príncipe fazia dos livros o seu refúgio contra a família. Eu reinava em minha solidão tão desejada, e que pude enfim alcançar.

Era uma solidão que eu buscara por toda uma vida. E foi por ela que vivi todos esses anos sem nenhum tipo de transtorno ou de preocupação. Vazia de todas as perturbações, eu era livre de todos os meus antigos heróis, que voltavam apenas em forma de fantasmas nas longas noites do meu sono inquieto e fragilizado pelos passos... Os passos do rei, que comprara cartões postais para confirmar a eficiência dos serviços de correio. Os passos da princesa cansada por ter dado o amor que nunca receberia em troca. Os passos do príncipe altivo e sóbrio, de tanto delirar tornara-se humano. Eu, sozinha, eu mesma e só.

Foi então que vi a luz da Lua cintilar no céu escuro da noite – foi através da Lua que pude entender a clareza e a nitidez do brilho do Sol. E o castelo, as torres, o jardim, a borboleta, e eu, eu mesma apenas – tudo era o latejo da vida que não pertencia ao meu alcance de rainha. Vanessa era a sua própria vida. Vanessa, que carregava em si a sua morte, pôde então morrer-se várias e várias vezes, só para continuar a ser o que já se era mas não sabia. E acordou desperta para a sua própria morte – pois a morte era a vida mais profunda que despertava por toda a sua alma adormecida. Não havia posses, a propriedade que lhe cabia era a certeza de que existia em seu castelo, que nem seu realmente era. Chame-a Vanessa, rainha de sua legítima destruição.

Despedida

Tua dor é o nada. O que sentes, pensa e sofre é a garoa, é a névoa informe, não importa. Não tenta te explicar, tua dor não vale o ópio que procuras nas noites de insônia. Chora
sozinho, da névoa para a névoa, e as árvores te farão sombra e companhia durante o dia. À noite tenta deitar e sonhar, pois o dia escurece cedo, a claridade é um suspiro medroso, ferida aberta e exposta aos males e cuidados da Lua de um céu em pedaços.

As estrelas se repartem em teu peito, pois mesmo assim és a estrela. És a estrela de mil pontas, e moras nos pedaços de minha alma que já não se percebe (e eu que nem sei se monstro sofre, se monstro tem alma...). Não percebes que aos poucos morro, e amanheço morta a cada manhã: A espera dessa minha estrela que se atrasa. Não chega, onde está, onde estaria... E espero amarga pela resignação terrena, esmola dos deuses e corrosão sublime e esparsa, em pedaços minha alma, em pedaços... Sempre o mesmo, o mesmo no mesmo lugar. O nada insiste, sempre vem me resgatar...

Quero me despedir devagar, porque no fundo eu sei que queria ficar... Por que estou fugindo de mim mesma, fugindo para o mesmo, o mesmo num outro lugar.

Coquinho é bailarina

Coquinho me faz mergulhar num sono azul e impossível: em meio à floresta carrego o famoso cesto de flores; sigo em frente e não olho pra trás. O púrpura das flores ilumina o caminho arbitrário de minha frágil intuição. Coquinho inesperado. Coquinho reflete, como espelho d’água, a sombra de minha própria alma. E de repente, Coquinho se humaniza ao lado meu:
- “Você é uma menina a andar no cemitério”.
Nesse instante, meu mundo caiu. Tentei explicar-lhe que isso não era verdade:
- “É só uma impressão, só uma impressão...”.
Acordo impressionada. Em que consistiria tal revelação? Tive, por um momento, a certeza de que negava o que de modo algum posso continuar a esconder. Minhas mãos, trêmulas, frias, intocadas diante do primeiro passo a caminho do céu. Apenas uma impressão. Uma impressão que negra se espalha no cesto de flores. Anoitece na floresta embaçada. A floresta a gelar transpira através do orvalho úmido da terra fértil. O orvalho que nasce da noite é como uma semente medrosa. É a Lua espontânea da noite estrelada. É uma voz confusa que se perde no labirinto do pensamento.

A Morte

Era uma vez uma vila pequena e distante. No coração de um bosque cheio de medos e fantasias, havia uma menina muito sábia e desmedida. Seu totem chamava-se Alberto. A menina era Sabrina, e gostava de morangos. Com calda, e muita. Certo dia, Sabrina entrou em coma. Foi levada ao curandeiro da sétima sombra de um arbusto. Descobriu-se que Sabrina era alérgica a morangos. E com calda morreria. Seu totem, Alberto em feridas, dessa vez de nada sabia. Levou-lhe morangos com calda, os quais Sabrina desiludia:
- Como podes, tu, Alberto, desejar-me triste sina?...

E matou-lhe sem remorsos, só a mágoa que sentia.

Pouco antes de fechar os olhos, Alberto, o totem da vida, afundou-se em melancolia. Os dois reencontraram-se no céu, e hoje moram lado a lado, como legítimos filhos do Senhor.

Clara

Lembro-me do dia em que vimos as estrelas.
O oráculo alto, os corpos largados no chão...

Lembro-me do dia em que, pela primeira vez, fui maltratada sem saber por que. E estendi meu corpo cansado no chão, pois queria rever as estrelas...

Lembro-me do dia em que recebi todo o teu amor. E, sonhando suspiros, estendi meu corpo enlevado no chão, pois queria ver as estrelas...

Lembro-me do dia em que fui entristecida sem entender exatamente por que. E estendi meu corpo em pedaços no chão, pois queria rever as estrelas...

Lembro-me do dia que, em vão, tentei entender o mal que me habitava.
Não tenho escrúpulos. Abertamente traí.

Absoluta.
Toda absorta.
Perfídia do sonho de mim mesma.

Se o teu nome me fosse revelado
Nada mudaria.
Que faria eu com teu nome...

Lembro-me agora... Não existe rever as estrelas, ah, não existe...
O mundo não será dividido para que possas compreender as pessoas.
O bem e o mal não existem em forma pura. Estás lúcida! Tão lúcida...

E nem toda a lucidez das estrelas parece confortar
A existência da alma amarga de quem vê as estrelas
Tantas vezes pela última vez.

A noite.
Noite qualquer...
Clara.

Natal

As sete pétalas que atiraste ao mar no exato momento de uma grande revelação.
E a cada dia percebias que escalara o alto dos céus.
Nada vale o alto dos céus.
A própria escalada representa a tua queda.
E entretanto, nunca paraste.
Sete anos se passaram, e de repente, sentistes falta das sete pétalas que atirastes ao mar.

"Encontrarás tudo o que te falta dentro de teu próprio ser. Não se sentirá mais sozinho quando descobrires que és, de fato, tua única e verdadeira companhia".

A distância que nos separa quando estamos lado a lado é o que de mais humano podemos compartilhar:
A frieza e a falta de alvos.
Os lapsos de memória.
A palavra que escapa.
A mente que se esconde em devaneios.
A inspiração incomunicável.

A vida, em toda sua glória.
Vida indiferente e esplendorosa...

"Encontrarás dentro de teu próprio ser o amor pelo qual tens lutado e dispendido tanto de teu tempo e de teus cuidados. Tantas vezes erraste por amar e não perceber que o amor é a tua única meta e a tua única motivação".

Semelhantes os nossos erros.
Semelhantes as nossas alegrias.

Erraste por seguidas sete vezes.
Choraste em vão e por nada.
Nada nos separa

(...)

Tudo o que nos separa
É parte de nossa mesma condição humana.
A única fonte e a única verdade em comum a cada um de nós.

Ouvindo: Brickwork I (Leaving Entropia) - Pain of Salvation

Aos mendigos que habitam os arredores da Sala São Paulo

Eu nunca tinha visto
um mendigo a caçar no lixo
o alimento que lhe falta...
Eu mal posso imaginar
se ele tem força o bastante
ao menos para sonhar.
Eu choro ao esquentar
um prato de comida
Porque sei que algo me falta...
Sou um monstro fadado ao cemitério
Minh'alma negra a gelar
As retinas se contorcem
No mundo há tanta miséria
E o Sol insiste em nascer
A incessante busca por um canto que não vem...
Eu fingia acreditar que o mendigo sem ter
o que vestir era cena de filme sem sentido
Os homens tão grandes e tão pequenos
Afogados, perdidos entre os contrastes da vida.
Tento imaginar se o mendigo faminto da cidade
seria feliz se estivesse em meu lugar
Se ele também estaria chorando
diante de um toca CD...

Ouvindo "Full Circle" - Loreena Mckennit

30 de Maio

Ao calor deste Sol do abandono
Sinto a brisa gelada do outono
Abro um um livro e disfarço o vazio
Que me causa a tristeza de abril
Fim de maio, começo de junho
Como eu quero da vida estar junto...

Escadaria da Rua do Lago, rodeada por árvores,
insetos e formigas.

Além da Despedida

Eu não preciso de baladas
Eu não preciso de álcool
Eu não preciso ser pop
Eu não preciso ter muitos amigos
Eu não preciso querer fumar quando não sei
o que fazer com as minhas mãos ainda trêmulas

Eu não preciso ser mais do que já sou
Eu não preciso da sua segurança
Eu não preciso da sua eloquência

Mas preciso de um som ligado
enquanto tomo chá gelado...

Eu procurava ler nos seus olhos
o que você (não) sentia.

Ausência e presença
Frio no verão

Saudade da dor que a sua indiferença
camuflada sob uma meia-afeição
me causava através de púrpuras intenções...

"O beijo, amigo, é a véspera do escarro.
A mão que afaga é a mesma que apedreja".

Apenas...