domingo, 30 de setembro de 2007

Vanessa

Eu morava num castelo alto e encantado, numa vida sofrida e trágica de rainha. Vivia perdida no jardim de minhas próprias torres. O rei fugira, a princesa se matara, o príncipe morrera. Eu, rainha de meu próprio castelo em ruínas tranqüilas após todos esses anos que se passaram devagar. E mesmo assim eu não enlouquecera, pois a culpa já não me era essencial.

Cada dia era a eternidade de uma depressão desbotada. A mim chame Vanessa, filha dos ventos, mensageira de tua morte, e portadora de minha própria habitação: Pois veja que o castelo era meu. Castelo alto e encantado que me pertencia desde os tempos mais remotos. Escuto com tédio interessado aos ecos de meu jardim. E me perco entre os sons dessa pequena floresta de sonhos e de tentações. As cores de suas asas... As asas da borboleta que pairava sobre as flores de algodão.

Não recebia cartas, nem telefonemas. O computador quebrara, já era tempo, pois eu precisava mesmo era viver o Sol de meu jardim, localizado dentro de minhas torres, todas constituintes do meu castelo. Castelo alto e encantado que era meu. O rei não gostava de cartões postais, a princesa envaidecera e não comia, o príncipe esquecera de voltar. Eu, rainha insípida e morna e frígida e fria, insistia em reinar.

Se te conto o meu relato, não é para te emocionar, pois eu já perdera os antigos sentimentos humanos. A alegria convertera-se em alergia profunda à vida. Mas entenda que não se tratava de melancolia. Eu não era alegre nem triste nem poeta. Era rainha, rainha apenas – rainha das florestas, rainha das torres, rainha e proprietária de um castelo alto e encantado. O rei descobrira que sobrevivia, a princesa se entregara à madrugada horrenda, o príncipe fazia dos livros o seu refúgio contra a família. Eu reinava em minha solidão tão desejada, e que pude enfim alcançar.

Era uma solidão que eu buscara por toda uma vida. E foi por ela que vivi todos esses anos sem nenhum tipo de transtorno ou de preocupação. Vazia de todas as perturbações, eu era livre de todos os meus antigos heróis, que voltavam apenas em forma de fantasmas nas longas noites do meu sono inquieto e fragilizado pelos passos... Os passos do rei, que comprara cartões postais para confirmar a eficiência dos serviços de correio. Os passos da princesa cansada por ter dado o amor que nunca receberia em troca. Os passos do príncipe altivo e sóbrio, de tanto delirar tornara-se humano. Eu, sozinha, eu mesma e só.

Foi então que vi a luz da Lua cintilar no céu escuro da noite – foi através da Lua que pude entender a clareza e a nitidez do brilho do Sol. E o castelo, as torres, o jardim, a borboleta, e eu, eu mesma apenas – tudo era o latejo da vida que não pertencia ao meu alcance de rainha. Vanessa era a sua própria vida. Vanessa, que carregava em si a sua morte, pôde então morrer-se várias e várias vezes, só para continuar a ser o que já se era mas não sabia. E acordou desperta para a sua própria morte – pois a morte era a vida mais profunda que despertava por toda a sua alma adormecida. Não havia posses, a propriedade que lhe cabia era a certeza de que existia em seu castelo, que nem seu realmente era. Chame-a Vanessa, rainha de sua legítima destruição.

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