domingo, 31 de agosto de 2008

Resumè

Era uma vez, uma pilha de documentos que não serviam para nada. A pilha às vezes saía do prazo, e era necessário reconstruí-la. Três anos se passavam para que o trabalho fosse refeito. Três anos depois, a nova pilha de documentos continuava a não servir para nada. Curiosamente, entretanto, ela era responsável por identificar e catalogar todos os seres. Naturalmente, todos esses seres eram tudo, menos aquilo que constava em suas respectivas pilhas. Muitas expectativas foram geradas, e os seres há muito já não lutavam contra tão sinistro condicionamento, e passaram a se identificar com o conteúdo de suas pilhas. Perversos disfarces e sutilezas entrecortavam suas vidas cheias de sonhos. Sonhos de um ventre amordaçado, baseados em documentos, e que, conseqüentemente, não eram realmente seus. Além disso, mesmo quando um deles suspeitava da verdade, ainda assim era necessário manter em dia a sua pilha. Pois seria a tarefa de uma vida convencer todos os outros seres do contrário, e tirar-lhes, a um só golpe, todas as suas certezas, construídas ao longo de séculos e mais séculos de civilização.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Um pouco de tudo e ainda mais

Os carros e os ônibus passam muito rápido na madrugada. É preciso correr para alcançá-los. O Sol está nascendo, mas é preciso acenar para o motorista do ônibus. Com um pouco de sorte e bom humor, é possível alcançá-lo. Correr e subir as escadas. Na madrugada. É quase um lampejo. Um despertar. Uma lembrança. Recupero o todo à custa das partes. Dos cinco sentidos legendários, recupero os tremores e espasmos. Teus olhos se confundem com o nariz e a boca. Os cabelos e os olhos e os ouvidos. Os lábios, pernas, e calcanhares. O teu peito e as tuas mãos, e os tremores e os espasmos. Ao mesmo tempo, me é difícil reconstituir cada uma de tuas partes. Os veículos muito rápidos atravessam a madrugada. É preciso convocar o motorista. Por dentro. Sinto calor. Lá fora faz muito frio, mas confundo os teus olhos, e embora eu veja os teus braços, percebo os teus olhos e sinto os teus ombros. Não há tempo. Retorno à madrugada e aceito a novidade turbulenta da vida. Aceito as responsabilidades tortuosas da vida. Nada disso faz sentido agora. Mas não importa. Aceito a importância da falta. Acolho o incógnito. Abraço o estranho. Transmuto-o em êxtase divino. Mergulho em direção à alvorada. Dos cinco sentidos legendários... Os teus braços, tuas mãos, os teus olhos e cabelos. Suspiro com a calma tibetana de um pássaro. Ainda é possível sorrir. Ainda é possível sonhar. Quem diria pensar que sofrerias do medo da solidão... Há tantos anos. Por todos estes anos. As poucas palavras... A solidez de uma rocha. A se esconder por entre enigmas arbitrários. Como poderia! Sigo em paz. Ausente da tua presença. Coberta pelo reflexo da tua alma. Pelas entrelinhas da tua sombra. A caminho de novas vanguardas. A tolerar anacronias... Sigo em paz. Consciente. Dormente. Contemporânea...

sábado, 9 de agosto de 2008

Madrugada

Acordo no meio da noite, e embora não tivesse dormido sequer um par de horas, o sono, aos poucos, já se transformara em doses excessivas de dores abdominais. Debato-me contra a cama, contra a parede, o travesseiro. Contraio-me em direção ao chão e talvez à última derrocada de mais um ciclo. Idealizado, dolorido e necessário. Não fossem as cólicas de morte, não haveria disposição para relembrar, forçosamente, o verde denso dos teus olhos (Interrupção). Sangro até a perda da vida. Estou louca. Aos poucos, percebo que estou cansada, e meu corpo pressente a necessidade de cuidados paternos. Observo-me com atenção. Acompanho, com a lucidez dos loucos, os detalhes de cada expressão do meu rosto. Delicada agonia. Mentalizo, para aplacar a dor e os desejos da carne: “Eis o meu rosto. Isso é tudo quanto posso saber sobre mim”. Sou uma atriz lancinante. Uma hora e meia após o primeiro comprimido, misturo medicamentos. É preciso dormir ainda agora. Retorno ao espelho: ele reflete um rosto exausto, pálido e sedutor. Relembro novamente o verde denso dos teus olhos expressivos. Terão eles a mesma expressão da dor desesperada do meu rosto? Debato-me ainda contra a parede. Tento outras posições. Olho para o chão violento. Não sei até que ponto a violência pertence ao chão. (Meu pai, onde está você? Que eu fiz da nossa vida?) Não sei até que ponto a violência pertence ao chão ou aos meus olhos, que não são verdes. São olhos escuros e guerreiros de muitas batalhas. Perderam a inocência e a clareza de suas orbes. Afundo-me contra o ralo do banheiro. Estudo as expressões reveladoras do meu rosto. Confirmo nato talento para a encenação. Finjo a dor que meu corpo deveras sente. Apago-me em gritos abafados e ruídos enclausurados. Penso em ir ao médico. Penso em forjar atestados. O verde, o desejo, o denso espectro de um sonho. A dor e o espelho e o chão. O ralo, as paredes, os atores, a encenação. Palavras repetidas. Pouco sentido. Pouca vida. Amplamente o verde denso dos teus olhos. Tu, que não me conheces. Tu, que me alimentas. Portador de grande potencial criativo. O horizonte. No horizonte... Debato-me contra a cama. Os olhos do meu pai também são escuros. Não são claros como os teus. Mas nem por isso deixam de conter o toque enigmático que me impele ao teu encontro. A me assombrar. Nesse momento que, por natureza, seria atemporal, não fosse a linha do tempo linear e cheio de moedas. Talvez não haja espaço para a dor. Talvez o tempo não exista (Construto artificial). A dor não me impede de sentir desejos incestuosos (Duas horas de agonia). Contraio os músculos e os ossos. Aguardo o nascer do Sol. Reticente. Vazia. Não há motivos para mais explicações. O momento pelo momento. Dispensa esclarecimentos e argumentos e mais contradições. A dor, aos poucos, se dissolve no sentido absoluto do agora. Já é tarde, e ao mesmo tempo é muito cedo. Deixarei a ti para cuidar do meu sono. Restam-me três quartos de hora. Aguardarei o nascer do Sol. Reticente... Paciência.