sábado, 9 de agosto de 2008

Madrugada

Acordo no meio da noite, e embora não tivesse dormido sequer um par de horas, o sono, aos poucos, já se transformara em doses excessivas de dores abdominais. Debato-me contra a cama, contra a parede, o travesseiro. Contraio-me em direção ao chão e talvez à última derrocada de mais um ciclo. Idealizado, dolorido e necessário. Não fossem as cólicas de morte, não haveria disposição para relembrar, forçosamente, o verde denso dos teus olhos (Interrupção). Sangro até a perda da vida. Estou louca. Aos poucos, percebo que estou cansada, e meu corpo pressente a necessidade de cuidados paternos. Observo-me com atenção. Acompanho, com a lucidez dos loucos, os detalhes de cada expressão do meu rosto. Delicada agonia. Mentalizo, para aplacar a dor e os desejos da carne: “Eis o meu rosto. Isso é tudo quanto posso saber sobre mim”. Sou uma atriz lancinante. Uma hora e meia após o primeiro comprimido, misturo medicamentos. É preciso dormir ainda agora. Retorno ao espelho: ele reflete um rosto exausto, pálido e sedutor. Relembro novamente o verde denso dos teus olhos expressivos. Terão eles a mesma expressão da dor desesperada do meu rosto? Debato-me ainda contra a parede. Tento outras posições. Olho para o chão violento. Não sei até que ponto a violência pertence ao chão. (Meu pai, onde está você? Que eu fiz da nossa vida?) Não sei até que ponto a violência pertence ao chão ou aos meus olhos, que não são verdes. São olhos escuros e guerreiros de muitas batalhas. Perderam a inocência e a clareza de suas orbes. Afundo-me contra o ralo do banheiro. Estudo as expressões reveladoras do meu rosto. Confirmo nato talento para a encenação. Finjo a dor que meu corpo deveras sente. Apago-me em gritos abafados e ruídos enclausurados. Penso em ir ao médico. Penso em forjar atestados. O verde, o desejo, o denso espectro de um sonho. A dor e o espelho e o chão. O ralo, as paredes, os atores, a encenação. Palavras repetidas. Pouco sentido. Pouca vida. Amplamente o verde denso dos teus olhos. Tu, que não me conheces. Tu, que me alimentas. Portador de grande potencial criativo. O horizonte. No horizonte... Debato-me contra a cama. Os olhos do meu pai também são escuros. Não são claros como os teus. Mas nem por isso deixam de conter o toque enigmático que me impele ao teu encontro. A me assombrar. Nesse momento que, por natureza, seria atemporal, não fosse a linha do tempo linear e cheio de moedas. Talvez não haja espaço para a dor. Talvez o tempo não exista (Construto artificial). A dor não me impede de sentir desejos incestuosos (Duas horas de agonia). Contraio os músculos e os ossos. Aguardo o nascer do Sol. Reticente. Vazia. Não há motivos para mais explicações. O momento pelo momento. Dispensa esclarecimentos e argumentos e mais contradições. A dor, aos poucos, se dissolve no sentido absoluto do agora. Já é tarde, e ao mesmo tempo é muito cedo. Deixarei a ti para cuidar do meu sono. Restam-me três quartos de hora. Aguardarei o nascer do Sol. Reticente... Paciência.

Um comentário:

Edu Lazaro disse...

Bem estruturado, tortuoso, pontiagudo em partes, chapado para o corpo bater às quedas de psicológicas alturas até que desmaie de cansasso de si mesmo num patamar que será banhado de luz solar à alvorada breve

Vc não está só na sua dor- mesmo sabendo que a dor que vc sente é uma dor que em outros marca, e pensando que só se sente o que nos ataca, ao revevlá-la a compartilhação se tornou mútua comigo.