domingo, 30 de setembro de 2007

Quando eu quis o dentro dele

Era um fim de semana, frio e com sono. De chuva rasa. Mas eu acordara para o trabalho. Ansiava por aquelas horas de luz: Passaria adiante o pouco que a vida me ensinara custosamente devagar. E assim o fiz, com a sorte diária que pregava a consciência em oposição à mente e ao pensamento. E eu dissera de forma menor o simbolismo da Roda. E a Roda era energia a vibrar por meu dia pequeno. Saio salubre ao sol que se acaba em sal e saia opaca. Usaria as botas encostadas. Cano alto rumo à chuva. Rumo ao cansaço de cada passo em direção à cama. E então eu me acabaria. (Sozinha?!...)

Até que ele chegou. Na calçada. Bem sei que estava parado e bem calçado. Sustentando uma geração de sombras segredadas pela terra. Mas era uma chegada. E eu apenas disse o “oi” enfeitiçado. Ele respondera com o olhar de quem compreendia a indiferença dos amores esquecidos. Embasbacada... Pelo que eu não poderia, pelo que não se deve. O intocável era o bastante para que eu me apaixonasse pelo homem delicado. Encostado junto à porta dos meus medos mais antigos. Mãos no bolso, entendendo a extravagância da minha solidão. Não pude abandonar aquele que me chamara para que o mundo acontecesse escondidinho. Em silêncio, com a calma de alguns segundos. Discretamente.

Não era ele meu antes disso. Foi assim que eu me apaixonara pelo outro. Ao piscar dos olhos abertos. Pois o outro já me era conhecido... A voz voluptuosa, os gestos encobertos. O homem dos graves Mistérios. Mas surgira da terra. Era a amiga que não acontecera, e o amante que eu perdera por vergonha do meu corpo. E ele me olhava. Por todos aqueles segundos. E eu temia perder a noção das boas maneiras. Mas entenda: Tudo isso foi depois dele dissipar-se com a bruma, com a neblina. A mim restou a chuva, e a certeza de um nome que só poderia ser confirmado com a presença de quem não sabe a diferença entre o convite e a compulsão. Os limites eram desfeitos, e eu sabia que as palavras seriam as mesmas, e em todas as estações. E pensar que eu mal pude olhar para trás.

A fada rosada do lago

Era uma vez, um lindo menino pequeno de 10 anos e 7 meses. Ele morava sozinho numa linda choupana pequena, geograficamente localizada na latitude 207, longitude 428,3. Um lindo e pequeno bosque rodeava sua modesta e aconchegante habitação. O menino tinha medo do escuro, e por isso não tardava a dormir. Temia os domínios da Lua. Mas à noite ele sonhava com o Sol do meio dia. E então resolveu sair. Para o gramado dos unicórnios. Sob o sol, o alento. Era tudo muito lindo, e não iria ele se perder, pois o bosque era tal como um jardim pequeno.

Caminhando, o menino encontrou um lindo lago. Era molhado de água doce e azul, e também era pequeno. E então ele resolve colocar os pés já desnudos na água. Mas a água, com o toque dos seus pés tornou-se turva, e o céu escureceu, e o menino começou a chorar. Voltou correndo para a choupana. Logo adormeceu, e em sonho uma fada rosa, linda e pequena lhe disse para não ter medo do lago que o criara. De manhãzinha, o menino, ainda assustado, e ainda lindo mesmo assim, retorna ao lago, pois as fadas lhe indicavam o caminho. Outra vez tocou a água com os pés pequenos. E a água escureceu, e o céu se manchou de preto, e choveu um sal gelado. Em profundo desespero, o menino voltou correndo espanto para casa. A choupana em desalento o acolheu.

Logo o sono, e a fada rosada de seus sonhos. E então, a voz: “Eu sou o seu sonho. O sonho que alimenta a sua vida. Deverás voltar ao lago”. O menino amanhece em sobressalto, mas logo encontra um lindo amuleto que reluz rosado. E em estado de deslumbre reconhece o presente singelo de sua fada. Veemente em sua fé e firme em seus passos, o menino retorna alegre ao lago. Sem mesmo hesitar seus pés encontram água, e a água é limpa e fresca. E o espelho assim reflete a sua imagem. E dela surge a fada linda, bela, tão pequena em laços, rosa. E ela toca com as mãos pequenas o amuleto que o menino fortemente segurava.

Seus olhos eram água. O sal era a alegria de uma vida que surgia inquietante. Pululavam-lhe as pupilas pequeninas. E então, as mãos de sua fada crescem escurecidas a sugar-lhe as energias. E mais rápido que amendoim torrado, toda a figura dela se transforma. O lago violento e turvo dá forças ao monstro horrendo que outrora fora o Sol de um dia ensolarado. Céu escuro, e a fada era um polvo imenso que lhe tingia os pés de cinza, tentando tragar-lhe para o abismo. O menino era lindo até tremendo. Pois nem mais chorar podia. Pedia pelo Sol, por um milagre, por uma lágrima. Olheira qualquer, mas que nada. Parava. Parado, no nada. E o nado do polvo o fez delirar mancando. Até que o mundo, e tudo, e todos, depressinha deram de ser um tremendo e absurdo apocalipse: O menino em sua cama se partia. O mundo era agora todo feito e decorado. De algodão rosado e doce de esplêndida candura. E foram felizes para sempre.

Carta a mim mesma

Após os muitos e longos anos de domínio externo de minha província, enfim venço a batalha revolucionária e conquisto a emancipação. Dona dos domínios do mar. Tranquilamente vazia. Não por estar no topo, mas simplesmente por estar. Mesmo antes da obsessão pela aquisição de grandes terras. E sem mais a acrescentar. Não há os velhos bons tempos. Eles nunca existiram. Foi-se a neurose do ser dividido. Recordar é reviver o inferno do passado. E prever é utopia infundada da infância. Carpe diem... A colheita da falta. Colheita de torcicolo. Toda torta. Colheita do vento. Que sopra ao contrário, bagunçando braços e cabelos. Não há império que resista. Vazia e dona do mar. Tenho a ampla visão das corujas. E a inatividade compulsória de larvas e tentáculos infecundos. Do líquen, do abismo cortante do mar. A luz pacata e fria dos recortes e trevas abissais. Da amplitude fechada dos poros. E assim eu vivi, reinei e morri. Sem túmulos nem inscrições. Espontânea, recusei-me a comprar o amor perturbado daqueles que seriam os meus semelhantes. Para honrar um lugar e uma espécie. Por respeito à distorção irreversível dos corpos e das horas. Por viver um sonho desfocado. E por ter adivinhado o alívio dos segredos da morte. E que durma em paz.

Em nome da liberdade,

Ana.

Vanessa

Eu morava num castelo alto e encantado, numa vida sofrida e trágica de rainha. Vivia perdida no jardim de minhas próprias torres. O rei fugira, a princesa se matara, o príncipe morrera. Eu, rainha de meu próprio castelo em ruínas tranqüilas após todos esses anos que se passaram devagar. E mesmo assim eu não enlouquecera, pois a culpa já não me era essencial.

Cada dia era a eternidade de uma depressão desbotada. A mim chame Vanessa, filha dos ventos, mensageira de tua morte, e portadora de minha própria habitação: Pois veja que o castelo era meu. Castelo alto e encantado que me pertencia desde os tempos mais remotos. Escuto com tédio interessado aos ecos de meu jardim. E me perco entre os sons dessa pequena floresta de sonhos e de tentações. As cores de suas asas... As asas da borboleta que pairava sobre as flores de algodão.

Não recebia cartas, nem telefonemas. O computador quebrara, já era tempo, pois eu precisava mesmo era viver o Sol de meu jardim, localizado dentro de minhas torres, todas constituintes do meu castelo. Castelo alto e encantado que era meu. O rei não gostava de cartões postais, a princesa envaidecera e não comia, o príncipe esquecera de voltar. Eu, rainha insípida e morna e frígida e fria, insistia em reinar.

Se te conto o meu relato, não é para te emocionar, pois eu já perdera os antigos sentimentos humanos. A alegria convertera-se em alergia profunda à vida. Mas entenda que não se tratava de melancolia. Eu não era alegre nem triste nem poeta. Era rainha, rainha apenas – rainha das florestas, rainha das torres, rainha e proprietária de um castelo alto e encantado. O rei descobrira que sobrevivia, a princesa se entregara à madrugada horrenda, o príncipe fazia dos livros o seu refúgio contra a família. Eu reinava em minha solidão tão desejada, e que pude enfim alcançar.

Era uma solidão que eu buscara por toda uma vida. E foi por ela que vivi todos esses anos sem nenhum tipo de transtorno ou de preocupação. Vazia de todas as perturbações, eu era livre de todos os meus antigos heróis, que voltavam apenas em forma de fantasmas nas longas noites do meu sono inquieto e fragilizado pelos passos... Os passos do rei, que comprara cartões postais para confirmar a eficiência dos serviços de correio. Os passos da princesa cansada por ter dado o amor que nunca receberia em troca. Os passos do príncipe altivo e sóbrio, de tanto delirar tornara-se humano. Eu, sozinha, eu mesma e só.

Foi então que vi a luz da Lua cintilar no céu escuro da noite – foi através da Lua que pude entender a clareza e a nitidez do brilho do Sol. E o castelo, as torres, o jardim, a borboleta, e eu, eu mesma apenas – tudo era o latejo da vida que não pertencia ao meu alcance de rainha. Vanessa era a sua própria vida. Vanessa, que carregava em si a sua morte, pôde então morrer-se várias e várias vezes, só para continuar a ser o que já se era mas não sabia. E acordou desperta para a sua própria morte – pois a morte era a vida mais profunda que despertava por toda a sua alma adormecida. Não havia posses, a propriedade que lhe cabia era a certeza de que existia em seu castelo, que nem seu realmente era. Chame-a Vanessa, rainha de sua legítima destruição.

Despedida

Tua dor é o nada. O que sentes, pensa e sofre é a garoa, é a névoa informe, não importa. Não tenta te explicar, tua dor não vale o ópio que procuras nas noites de insônia. Chora
sozinho, da névoa para a névoa, e as árvores te farão sombra e companhia durante o dia. À noite tenta deitar e sonhar, pois o dia escurece cedo, a claridade é um suspiro medroso, ferida aberta e exposta aos males e cuidados da Lua de um céu em pedaços.

As estrelas se repartem em teu peito, pois mesmo assim és a estrela. És a estrela de mil pontas, e moras nos pedaços de minha alma que já não se percebe (e eu que nem sei se monstro sofre, se monstro tem alma...). Não percebes que aos poucos morro, e amanheço morta a cada manhã: A espera dessa minha estrela que se atrasa. Não chega, onde está, onde estaria... E espero amarga pela resignação terrena, esmola dos deuses e corrosão sublime e esparsa, em pedaços minha alma, em pedaços... Sempre o mesmo, o mesmo no mesmo lugar. O nada insiste, sempre vem me resgatar...

Quero me despedir devagar, porque no fundo eu sei que queria ficar... Por que estou fugindo de mim mesma, fugindo para o mesmo, o mesmo num outro lugar.

Coquinho é bailarina

Coquinho me faz mergulhar num sono azul e impossível: em meio à floresta carrego o famoso cesto de flores; sigo em frente e não olho pra trás. O púrpura das flores ilumina o caminho arbitrário de minha frágil intuição. Coquinho inesperado. Coquinho reflete, como espelho d’água, a sombra de minha própria alma. E de repente, Coquinho se humaniza ao lado meu:
- “Você é uma menina a andar no cemitério”.
Nesse instante, meu mundo caiu. Tentei explicar-lhe que isso não era verdade:
- “É só uma impressão, só uma impressão...”.
Acordo impressionada. Em que consistiria tal revelação? Tive, por um momento, a certeza de que negava o que de modo algum posso continuar a esconder. Minhas mãos, trêmulas, frias, intocadas diante do primeiro passo a caminho do céu. Apenas uma impressão. Uma impressão que negra se espalha no cesto de flores. Anoitece na floresta embaçada. A floresta a gelar transpira através do orvalho úmido da terra fértil. O orvalho que nasce da noite é como uma semente medrosa. É a Lua espontânea da noite estrelada. É uma voz confusa que se perde no labirinto do pensamento.

A Morte

Era uma vez uma vila pequena e distante. No coração de um bosque cheio de medos e fantasias, havia uma menina muito sábia e desmedida. Seu totem chamava-se Alberto. A menina era Sabrina, e gostava de morangos. Com calda, e muita. Certo dia, Sabrina entrou em coma. Foi levada ao curandeiro da sétima sombra de um arbusto. Descobriu-se que Sabrina era alérgica a morangos. E com calda morreria. Seu totem, Alberto em feridas, dessa vez de nada sabia. Levou-lhe morangos com calda, os quais Sabrina desiludia:
- Como podes, tu, Alberto, desejar-me triste sina?...

E matou-lhe sem remorsos, só a mágoa que sentia.

Pouco antes de fechar os olhos, Alberto, o totem da vida, afundou-se em melancolia. Os dois reencontraram-se no céu, e hoje moram lado a lado, como legítimos filhos do Senhor.

Clara

Lembro-me do dia em que vimos as estrelas.
O oráculo alto, os corpos largados no chão...

Lembro-me do dia em que, pela primeira vez, fui maltratada sem saber por que. E estendi meu corpo cansado no chão, pois queria rever as estrelas...

Lembro-me do dia em que recebi todo o teu amor. E, sonhando suspiros, estendi meu corpo enlevado no chão, pois queria ver as estrelas...

Lembro-me do dia em que fui entristecida sem entender exatamente por que. E estendi meu corpo em pedaços no chão, pois queria rever as estrelas...

Lembro-me do dia que, em vão, tentei entender o mal que me habitava.
Não tenho escrúpulos. Abertamente traí.

Absoluta.
Toda absorta.
Perfídia do sonho de mim mesma.

Se o teu nome me fosse revelado
Nada mudaria.
Que faria eu com teu nome...

Lembro-me agora... Não existe rever as estrelas, ah, não existe...
O mundo não será dividido para que possas compreender as pessoas.
O bem e o mal não existem em forma pura. Estás lúcida! Tão lúcida...

E nem toda a lucidez das estrelas parece confortar
A existência da alma amarga de quem vê as estrelas
Tantas vezes pela última vez.

A noite.
Noite qualquer...
Clara.

Natal

As sete pétalas que atiraste ao mar no exato momento de uma grande revelação.
E a cada dia percebias que escalara o alto dos céus.
Nada vale o alto dos céus.
A própria escalada representa a tua queda.
E entretanto, nunca paraste.
Sete anos se passaram, e de repente, sentistes falta das sete pétalas que atirastes ao mar.

"Encontrarás tudo o que te falta dentro de teu próprio ser. Não se sentirá mais sozinho quando descobrires que és, de fato, tua única e verdadeira companhia".

A distância que nos separa quando estamos lado a lado é o que de mais humano podemos compartilhar:
A frieza e a falta de alvos.
Os lapsos de memória.
A palavra que escapa.
A mente que se esconde em devaneios.
A inspiração incomunicável.

A vida, em toda sua glória.
Vida indiferente e esplendorosa...

"Encontrarás dentro de teu próprio ser o amor pelo qual tens lutado e dispendido tanto de teu tempo e de teus cuidados. Tantas vezes erraste por amar e não perceber que o amor é a tua única meta e a tua única motivação".

Semelhantes os nossos erros.
Semelhantes as nossas alegrias.

Erraste por seguidas sete vezes.
Choraste em vão e por nada.
Nada nos separa

(...)

Tudo o que nos separa
É parte de nossa mesma condição humana.
A única fonte e a única verdade em comum a cada um de nós.

Ouvindo: Brickwork I (Leaving Entropia) - Pain of Salvation

Aos mendigos que habitam os arredores da Sala São Paulo

Eu nunca tinha visto
um mendigo a caçar no lixo
o alimento que lhe falta...
Eu mal posso imaginar
se ele tem força o bastante
ao menos para sonhar.
Eu choro ao esquentar
um prato de comida
Porque sei que algo me falta...
Sou um monstro fadado ao cemitério
Minh'alma negra a gelar
As retinas se contorcem
No mundo há tanta miséria
E o Sol insiste em nascer
A incessante busca por um canto que não vem...
Eu fingia acreditar que o mendigo sem ter
o que vestir era cena de filme sem sentido
Os homens tão grandes e tão pequenos
Afogados, perdidos entre os contrastes da vida.
Tento imaginar se o mendigo faminto da cidade
seria feliz se estivesse em meu lugar
Se ele também estaria chorando
diante de um toca CD...

Ouvindo "Full Circle" - Loreena Mckennit

30 de Maio

Ao calor deste Sol do abandono
Sinto a brisa gelada do outono
Abro um um livro e disfarço o vazio
Que me causa a tristeza de abril
Fim de maio, começo de junho
Como eu quero da vida estar junto...

Escadaria da Rua do Lago, rodeada por árvores,
insetos e formigas.

Além da Despedida

Eu não preciso de baladas
Eu não preciso de álcool
Eu não preciso ser pop
Eu não preciso ter muitos amigos
Eu não preciso querer fumar quando não sei
o que fazer com as minhas mãos ainda trêmulas

Eu não preciso ser mais do que já sou
Eu não preciso da sua segurança
Eu não preciso da sua eloquência

Mas preciso de um som ligado
enquanto tomo chá gelado...

Eu procurava ler nos seus olhos
o que você (não) sentia.

Ausência e presença
Frio no verão

Saudade da dor que a sua indiferença
camuflada sob uma meia-afeição
me causava através de púrpuras intenções...

"O beijo, amigo, é a véspera do escarro.
A mão que afaga é a mesma que apedreja".

Apenas...