sábado, 24 de novembro de 2007

A Festa

A tal festa era das mais discrepantes, porque as meninas de quase quinze já eram mulheres, enquanto os seus pares eram ainda menininhos mal-formados. No máximo alguns deles já poderiam ter alguma noção a respeito dos torneios do mundo... Eu era, entre elas, mulherzinha - mesmo ao carregar um peso muito mais antigo do que o daquele representado pela minha idade. Não importa. Mesmo depois dos 15, eu estava divinamente rosa. Despida de colares, de maquiagem, dos pesares tortuosos da vida...

Ele me olhava, me olhava, me olhava... Por momentos, até pensei que talvez o meu vestido rosa tivesse sumido!... Mas ele estava lá, colado ao meu corpo. Tenho certeza de que eu era muito rosa, apesar da expressão forasteira aos sorrisos e paparicos serpenteados da noite. E ele me olhava, me olhava ainda... Eu sabia, sabia o que era aquilo: Ele iria me adotar. Aquele homem percebera que ele era, desde há muito, um voluntário. E me adotaria, cuidaria de mim, conversaria comigo, e me suportaria em fase tão crucial da vida!... Ele seria o meu homem, o meu pai, um deus profano e necessário em meio a todo esse abandono da Terra...

Ingênuo engano o meu... Ele me olhava, ele me seduzia... E ao invés de concretizar os meus delírios da paternidade, ele seguiu os rastros das pétalas vermelhas roubadas que eu espalhei pelo chão... Para marcar os meus últimos passos depois de tão doce despedida. E ele rompeu a simplicidade da minha homenagem silenciosa. Apertou as minhas mãos, e me induziu a analisar a sua expressão inebriada. A ver o seu sorriso de muitas e perplexas intenções denunciadoras. Ele queria que eu retribuísse a tempo os seus sacrifícios noturnos.

E entendeu que, eu, então, nada mais poderia fazer, além do embaraço espontâneo que era próprio dos contornos oculares da madrugada. Olhar de quem já dorme sem nem desconfiar... De quem se perde por não entender o que fazer com o acaso que já partia para o plano atemporal da fantasia... Ele se foi, enquanto eu saía. Para só voltar como a lembrança de um homem velho, sedutor e brincalhão... Não o sábio ermitão que nos oferece a luz e o conforto de muitas montanhas longínquas e despovoadas, mas sim o redentor que não se esquiva dos prazeres possíveis e misteriosos do acaso. Pois eu sei que ele ignora o significado de qualquer tentativa fracassada de pretensão...

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Neutro

Ela me pisa, me perfura, me provoca. E depois me machuca, me humilha, me detona. Ela também me apedreja, me tortura, me aprofunda. Depois ela me afoga, me cega e me vomita um monte de palavras sujas. Ela coloca pedras dentro dos meus olhos, e eu vou ficando cada vez mais inchada, mais cansada, mais acabada. Ela, às vezes, também me envelhece. Ainda bem que ela é mulher, pois se ela fosse homem, tenho certeza de que eu a amaria muito mais fundo, e desejaria me perder dentro dela. Se ela fosse homem, ela seria a minha perdição, pois eu desejaria ardentemente odiá-la, pois estou exausta de amar aos meus inimigos como a mim mesma. Ainda bem que ela é mulher...

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Merengue

É que às vezes isso me dói dentro da carne: Ter de manusear tamanhas facas durante todos e tantos dias. Sou órfã há algum tempo. Foi acontecendo, não se poderia evitar. Quem sabe uma fatalidade. Continuo a intuir a presença de meus pais, e eles continuam vivos. Mas eles não se entendem entre si. Mudei-me para o meu pensamento. Meus irmãos estão semimortos. Às vezes ainda tento visitá-los, muito raro, mas acontece. Eles, de quando em quando, também tentam me visitar. Mas eles não se entendem entre si. Acabamos por ruir certas sutilezas do passado. As palavras não existem mais em sua forma tradicional. Os diálogos são amontoados de palavras muito modernas. Elas são um fetiche violento, quase um abuso. São insultos silenciosos e cheios de pretensões muito perversas. E pensar que o homem vive em busca de amor! Como pode se os homens - eles não se entendem entre si.

E é que às vezes isso me dói dentro dos sentidos: Ter de acatar tamanhas diferenças todos e tantos dias. Não entendo o porquê das peculiaridades nossas, tão mesquinhas, sufocadoras. Como a de tantos outros homens que não se entendem entre si. E entre eles as mulheres, tentei aproximá-las. Achar estratégias em comum, contar as nebulosas. Mas elas não se entendem, não se entendem... Relembrei com certo pesar a tortura de abandonar o útero materno. Segui adiante, voltando-me ao oposto de mim. Eles, os homens, me adoram. Por toda uma longa noite de vertigens ilusionistas. Mas não há como estender tais sentimentalidades para além do amanhecer: Os homens não se entendem entre si. E a verdade é que eu tampouco os entendo. E eles, não se entendendo, sentem o correr das horas como a promessa de uma vida inflamada e duradoura. Como se a falta fosse em si, o laço acolhedor da humanidade. Mal sabem, eles, enquanto dormem... Que os homens não se entendem entre si.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Distopia

Era uma vez quando eu era uma abelha. Uma abelhinha... Pequena, amarelinha, listras pretas. Eu não entendo nada de Biologia, pois no tempo eu que eu vivi, as abelhas não precisavam freqüentar o colegial. Mas o fato é que eu conhecia muitos outros insetos. E uma vez, um papagaio me contou que as borboletas eram pássaros, digo... Não sei bem o que é uma borboleta... Que são aves, que são pássaros que passam muito tempo pra nascer. Que elas vivem um tempão presas num casulo escuro. E que depois de muito tempo lá, elas saem e ficam bonitonas, com aquelas duas asinhas incríveis!... Você já sabe o resto... Elas têm um dia apenas de vida! E depois disso a Morte. Depois do grande dia pelo céu das flores...

Muita gente já falou sobre isso. Já escreveram poemas, romances, contos... Já fizeram muitas músicas também. Inventaram-lhe as mais finas teorias. Entenderam-lhe a simbologia. E dos símbolos a alegoria. Sem contar as metáforas, os arranjos, os saraus, as dedicações pessoais de imenso afeto e proteção... Já pensaram no paradoxo de sua condição: Imaginaram os sofrimentos e as angústias enfrentadas pela larva em tão jovem agonia... Imaginaram também o contrário: Quem sabe o casulo era assim, uma casinha intimista. Pensaram, ainda, a alegria do seu último dia. A sensação do primeiro vôo e o pousar delicado sobre as flores e as folhas e as águas e o chão.

O que eu não sabia era que, na colméia de Dona Cacarocha, colméia essa em que eu vivia, todo mundo a borboleta conhecia... Conheciam a dor do nascimento dela, conheciam a delícia da sua vida derradeira e fugidia. Comentavam-na a brados, contavam-na aos seus filhos. A saga se expandia, se alastrava. E, sutilmente, alienava toda uma população. A verdade é que as abelhas todas já estavam estragadas. Viviam desses boatos. Boatos de papagaio, boatos do Egito. Repetiam a história enfadonha como máquinas ensolaradas. Seu sentido há muito se esvaziara. E de fato, as abelhas não sabiam quanto tempo viveriam. Elas não sabiam!... Mas guardavam em suas almas o mistério da história linda e trágica das vizinhas coloridas.

Quando uma abelha caía e se machucava, nada as outras faziam. Nada além de contar-lhe a história longuíssima e louca, o pesar e o delírio de uma borboleta que nem sequer conheciam. Acontece que não se consola uma abelha com história de borboleta. Há tempos eu sentia falta de ter o direito de contar a alguém a minha própria história... As abelhas só tinham ouvidos para as borboletas. Eu caí e comecei a sangrar. E contaminei o meu mel com o vermelho das minhas células. Até que a Lua alta apiedou-se e iluminou o meu corpo. Foi então que as abelhas perceberam que eu morrera. E me enterraram no profundo do abismo matutino, após as devidas bênçãos e orações. Pouquíssimas lágrimas. Nenhuma aflição. Uma calma desoladora: O mel que eu criara não morrera. Eu sabia que ele ficaria gravado junto ao meu sangue de abelha. E então o mundo poderia se acabar. Em paz... Pois eu sabia que a grande Roda não continuaria a rodopiar assim em vão.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

A noite mais triste da primavera

Sei que o mundo iria se acabar. Pouco faltava: E ela, lá, sentada, não saía do sofá... Estava cansada por causa de mais um dia de trabalho. De fato, tudo mudara, e sua nova vida a esgotara terrivelmente. Talvez a ponto de, ao fim do dia, ela se esquecer do pulsar do mundo. Sentada no sofá - pois a sua casa abrigava muitos cômodos - confinava uma grande família: Distribuídos em seus quartos gelados. E ela estava no sofá. A cozinha já vazia, nem mesmo uma broa. Quanto mais um bolo... Todos a deixaram lá, sentada. Precisavam voltar aos seus quartos o mais rápido possível.

Na verdade, ninguém sabe o que é sentar naquele sofá enquanto o mundo está a se acabar. Não se sabe, apesar da nossa tamanha perspicácia. Apesar da sutileza dos nossos passos após o jantar. Dos nossos rastros silenciosos em direção a tantos outros aposentos. Do nosso descaso, do nosso abandono. Gente abandonada que, em resposta ao abandono resolveu abandoná-la, gentilmente, no sofá. Sem nem mesmo avisá-la. Sem fazê-la desconfiar do fim do mundo. Sentada, a tecer outros tempos, outros muros, outros murmúrios. A pensar que toda a verdade residia em sua própria criação. Não suspeitava que o seu passado era inexistente e não nos pertencia.

Enquanto voltávamos aos nossos quartos, esquecemos de reconstruir as ruínas primordiais. Hesitar, só em tempos de paz. Quem é louco de fazer da guerra um caos ainda maior? Pois então – pensamos – que assim seja. E distribuímos entre nós munições diversas e com cheiro de salsa. A guerra bem temperada, a guerra política. A guerra das modelos, das mulheres. Também a guerra dos genes. A guerra da cautela e do ausente senso de premonição. Tranqüilos diante do fim. Um silêncio cada vez mais sentencioso invadia as janelas escancaradas. Um silêncio que era guardado no ardor de muitas discussões, de muitas gargantas, das rodas malucas e roucas a girar desordenadamente. Das rodas suspensas, desligadas das asas indomáveis do destino.

A presença do fim era sentida em silêncio. Num silêncio camuflado pela dor e pelos rancores acumulados não se sabe nem como, nem onde. Inúteis os porquês. Perdida nos escombros a origem de tal semente grandiosa. Ela estava sentada e imóvel. E eu sei que os seus olhos guardavam um amor muito puro. E eu sei que esse amor foi o resultado de muitas batalhas. Talvez todas elas perdidas. Até que, novamente, a voz. A voz maior do silêncio, a impor os seus atritos no ar sufocante de novembro. E ela, a refazer, com todo o cuidado, as glórias perdidas do passado já mencionado. Do passado que ainda não existiu. Projeções de um tempo desconhecido...

Explode uma granada: E ela deita, mecanicamente, ao lado dela mesma. E se põe a balançar em pensamentos incomunicáveis aos aposentos gelados. Os quartos não podiam entender a pureza do que ela sentia. Ela, que após tantos tumultos, resignara-se ao pior de todos os pesadelos. E suportava aquela calmaria assassina a tirar-lhe do corpo os últimos sopros de vida. E os quartos estavam muito gelados, apesar de todo aquele calor, que aumentara ainda mais depois da chuva. E ela esperava, incansavelmente, pela volta de seu passado. Mas ele não poderia voltar, pois o passado que ela criara ainda não tinha existido. Até que, então, o fim do mundo chegou. Mas ela não pode vê-lo, pois nesse instante, as luzes do sofá se apagaram. Era escuro, e ela já estava dormindo.