quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Distopia

Era uma vez quando eu era uma abelha. Uma abelhinha... Pequena, amarelinha, listras pretas. Eu não entendo nada de Biologia, pois no tempo eu que eu vivi, as abelhas não precisavam freqüentar o colegial. Mas o fato é que eu conhecia muitos outros insetos. E uma vez, um papagaio me contou que as borboletas eram pássaros, digo... Não sei bem o que é uma borboleta... Que são aves, que são pássaros que passam muito tempo pra nascer. Que elas vivem um tempão presas num casulo escuro. E que depois de muito tempo lá, elas saem e ficam bonitonas, com aquelas duas asinhas incríveis!... Você já sabe o resto... Elas têm um dia apenas de vida! E depois disso a Morte. Depois do grande dia pelo céu das flores...

Muita gente já falou sobre isso. Já escreveram poemas, romances, contos... Já fizeram muitas músicas também. Inventaram-lhe as mais finas teorias. Entenderam-lhe a simbologia. E dos símbolos a alegoria. Sem contar as metáforas, os arranjos, os saraus, as dedicações pessoais de imenso afeto e proteção... Já pensaram no paradoxo de sua condição: Imaginaram os sofrimentos e as angústias enfrentadas pela larva em tão jovem agonia... Imaginaram também o contrário: Quem sabe o casulo era assim, uma casinha intimista. Pensaram, ainda, a alegria do seu último dia. A sensação do primeiro vôo e o pousar delicado sobre as flores e as folhas e as águas e o chão.

O que eu não sabia era que, na colméia de Dona Cacarocha, colméia essa em que eu vivia, todo mundo a borboleta conhecia... Conheciam a dor do nascimento dela, conheciam a delícia da sua vida derradeira e fugidia. Comentavam-na a brados, contavam-na aos seus filhos. A saga se expandia, se alastrava. E, sutilmente, alienava toda uma população. A verdade é que as abelhas todas já estavam estragadas. Viviam desses boatos. Boatos de papagaio, boatos do Egito. Repetiam a história enfadonha como máquinas ensolaradas. Seu sentido há muito se esvaziara. E de fato, as abelhas não sabiam quanto tempo viveriam. Elas não sabiam!... Mas guardavam em suas almas o mistério da história linda e trágica das vizinhas coloridas.

Quando uma abelha caía e se machucava, nada as outras faziam. Nada além de contar-lhe a história longuíssima e louca, o pesar e o delírio de uma borboleta que nem sequer conheciam. Acontece que não se consola uma abelha com história de borboleta. Há tempos eu sentia falta de ter o direito de contar a alguém a minha própria história... As abelhas só tinham ouvidos para as borboletas. Eu caí e comecei a sangrar. E contaminei o meu mel com o vermelho das minhas células. Até que a Lua alta apiedou-se e iluminou o meu corpo. Foi então que as abelhas perceberam que eu morrera. E me enterraram no profundo do abismo matutino, após as devidas bênçãos e orações. Pouquíssimas lágrimas. Nenhuma aflição. Uma calma desoladora: O mel que eu criara não morrera. Eu sabia que ele ficaria gravado junto ao meu sangue de abelha. E então o mundo poderia se acabar. Em paz... Pois eu sabia que a grande Roda não continuaria a rodopiar assim em vão.

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