domingo, 28 de outubro de 2007

Assimetria

Os garçons, eles eram tão bonitinhos... Vários deles, assim dedicados, de pele definida, e de traços bem marcados pela aura feminina. Com a barba bem feita. Mas tenho certeza de que um dia sem recursos artificiais os transformariam em homens exageradamente sedutores. Trajes adequadíssimos, cabelo impecável. Nem um só fio fora do lugar. Tão arrumadinhos! Polidos, tão bem educados... Sorriam muito mais do que o sangue derramado em tantos pratos! Pois era, a propósito, um paradoxo... Ver aqueles olhinhos adocicados me servindo chouriço...

Ecologia

- Quantas vezes eu já te disse pra não jogar o papel higiênico dentro da privada?
- Mas mamãe, por que não?
- Você está entupindo tudo! Deixa o seu pai saber disso pra você ver...
- Mas...

Algum tempo depois:

“Ao jogar o papel higiênico biodegradável no vaso sanitário, você está evitando o transbordamento dos aterros sanitários e contribuindo para o controle de contaminação da água”.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Quem sabe as flores

Ao olhar para os meus pés, percebi que estavam cobertos de flores. Por tanto tempo, eu pisara em flores... Desmanchando-as, abrindo-as, estilhaçando-as até a morte. Esquecera-me de lembrar a ecologia. E padeço por ter pisado na fonte da vida. E nada posso fazer.

Provavelmente continuarei a pisá-las, pois mesmo agora não consigo vê-las. Não conheço o segredo das flores. Não sei o mistério do orvalho que cai sobre elas, despertando-as para a manhã. Todos os dias.

Tudo bem – compreendo – talvez elas durmam no inverno. Mas não há mais inverno.
E as flores de repente estão mortas. (Pois o homem, você sabe...) Às vezes não posso mais vê-las. (Por ter destruído a demarcação das estações). Meus pés estão cobertos de flores...

Irmandade

Ela me copia. O tempo todo. Finge que as músicas de que eu mais gosto são as suas preferidas. E ainda tem coragem de dizer que é o contrário. Ela estraga todas as coisas de que eu mais gosto quando ela me copia. Porque eu tenho que achar algo novo todos os dias. Pra tentar me separar dela. Pra me individualizar. Mas não dá... Ela também é bipolar.

domingo, 21 de outubro de 2007

Filosofia

Na Catedral tradicionalíssima da Saúde, em frente ao metrô Santa Cruz, às 18:50h do dia 20 de outubro de 2007.

Khalyl diz: Cadê o Guilherme? Só faltam alguns minutos...
Cíntia: Já tô preocupada. Cadê ele? Ele já tá chegando?

Os noivos. Os músicos. Entre eles, Guilherme, o portador oficial das clarinadas.
Os clarins são instrumentos que podem belamente anunciar a chegada da noiva e conduzi-la até o altar. Também são muito importantes para mim.

Cíntia diz: Será que ele vem?!...

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Óculos escuros

Após o uso ininterrupto do par de óculos por 17 anos, Joãozinho se apresenta na escola com os olhos despidos. Por 17 anos Maria rejeitara todos os seus carinhos.
- Bom dia, Mariazinha!
- Bom dia, João!
- Nossa, por Deus do céu! Que cara é essa?
- Onde estão os seus óculos? Você fica tão diferente assim!...
- É mesmo? Fico parecendo o que? Mais bonito? (e mais se aproxima de Maria)
- Vem com essa não, que eu sou uma mulher de respeito! (e o afasta)...
- Não vou mais usar. Nem mais um dia. Vou não...
- Usa mais não, é?
- Nunca mais! Tá decidido...
- E por que não, ora essa agora! Acaso já enxerga sem eles?
- Olha, vou te dizer uma coisa: Vejo muito melhor agora...
- Puxa! Isso quer dizer que você não é mais míope! Está curado, João! Que raio de remédio foi esse?
- Tem remédio, não, menina... Remédio nenhum...
- Mas então só pode ser uma coisa! Você rezou feito um louco, não?
- Ora, essa! E desde quando sou dado à religião?
- Pois devia, viu! Eis aqui um milagre!...
- Milagre nenhum, Maria. Eu acordei e percebi que não precisava mais dos óculos pra enxergar. Simples assim, foi só acordar... E já não precisava mais deles!
- Virgem Maria! Que loucura!...
- Mas, veja bem, menina... Olha só: Você não está entendendo... Eu continuo míope. O que eu vejo agora não é nada que se possa ver, assim fácil... Talvez você, que sempre enxergou tudinho sem precisar de óculos, nunca tenha visto coisa igual...
- Assim você até me assusta, criatura!!! Quem fez isso foi o Diabo. (faz o sinal da cruz)
- Mas deixa disso, ó mulher! Meus novos olhos me fazem ver as coisas mais lindas que eu nem imaginava em sonhar...
- E que coisas são essas?...
- Posso ver cada detalhe do seu corpinho lindo... (e coloca as mãos na cintura dela)
- Ei! Pra lá, João! Mentiroso... Você é míope. Pode enxergar o que te está perto. Novidade nenhuma, isso não...
- Pois então vou te dizer o que eu realmente vejo!
- Pois bem, pode dizer!
- Vejo a Morte. Em mim, em você, no mundo... Todos mortos. A única diferença entre você e eu é que você não sabe que está morta. Eu já sei que morri. Desde que me tiraram do útero caudaloso de minha mãe... Estamos mortos, todos mortos, Maria!...
- Deus... (vertigem, mal pode sustentar o corpo)
- Deus também está morto. Depois de criar o homem, Ele morreu. Foi a sua última criação.
- Agora você já sabe...
- Sim, eu já sei!... E quis te contar depressinha...
- Mas eu já sabia...
- Já?
- Já... (Maria mostra a João o que guardara por todo esse tempo por debaixo do vestido: Um caixão. Dentro, Maria dormia, com o rosto encantado e os cabelos cobertos de flores... E entrega a João o atestado de óbito, datado com o símbolo do universo)
- Então já podemos ir...
- Vamos, então...
(Deram as mãos e caminharam até os horrores do Paraíso)

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Quando eu fiz ele cair das nuvens

O chamado fora atendido. Pois embora muito tempo tenha se passado, ele estava perto. Do meu lado. Como se os ponteiros não tivessem nunca mais existido por quase uma longa e impiedosa semana. Só faltou eu tropeçar nele. Estava em todos os lugares. E como ele estava... Eu vi! E pasme – sozinho. S-O-Z-I-N-H-O. De propósito. Só pra me provocar, pois sua blusa novamente tinha dois bolsos, um de cada lado. Olhar taciturno e preciso. Pra dentro da vida. E o sorriso. Um tantinho embaraçado, é verdade... Movimento amortecido dos lábios, dos músculos, das veias. E eu vendo tudo isso na minha frente, ah, Deus meu... Era demais para uma mulher tão pequena. Me confundem até com criança... Posso eu ver a vida sem censura?!... Já faz tempo que não se respeita o “proibido para menores”. Mas eu era velha demais para tantas novidades.

E o sorriso. De novo. Um aceno... Bem sofrido. Com vontade. Eu só podia era derreter. Desejei não estar de blusa. Desejei nunca saber o que era uma blusa. Só porque eu passava com pressa. Pois nessa vida não se pode parar: A gente acaba derretendo. Que nem calota polar. As mãos, elas ficavam escondidas como forma última de provocação. Assim já era demais. Agüentei mais não! Corri até as estrelas. Bem rápido. Voltei antes mesmo de ter saído. Pra não me acusarem de feitiçaria. O mundo já está cheio de charlatões. Em todas as seções, em todos os corredores. Em segredo. Nas criptas do meio da semana. Onde o nome outrora apagado é revivido para honrar o compromisso primeiro da renúncia.

E eu sabia que a verdade era a desgraça. Nada disso que pensaste. Bah! Fundo do poço, mas que nada! Passarinho com seu canto me tirara de lá. Uma dor insuportável, que crescia descendo pelo corpo. Eu sabia que poderia ser feliz a qualquer momento... (Iiiiih – passarinho assassino da clausura). A meus pés, o homem delicado. O homem dos graves Mistérios. Ele que nascera da terra. E crescera para mostrar o pêndulo da vida: E eis que estava lá, o tempo todo... A felicidade a qualquer momento. Eu poderia... Faltava muito não. Mas então, o dia acabou. Ele estava muito assustado. Só eu sabia. Apesar da sua calma. Do seu pesar. E do meu cansaço... Igual ao fim do dia... Ao meu lado, eu poderia (...) Passarinho se foi cantando, Iiiiih. Tem mais não.