sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Óculos escuros

Após o uso ininterrupto do par de óculos por 17 anos, Joãozinho se apresenta na escola com os olhos despidos. Por 17 anos Maria rejeitara todos os seus carinhos.
- Bom dia, Mariazinha!
- Bom dia, João!
- Nossa, por Deus do céu! Que cara é essa?
- Onde estão os seus óculos? Você fica tão diferente assim!...
- É mesmo? Fico parecendo o que? Mais bonito? (e mais se aproxima de Maria)
- Vem com essa não, que eu sou uma mulher de respeito! (e o afasta)...
- Não vou mais usar. Nem mais um dia. Vou não...
- Usa mais não, é?
- Nunca mais! Tá decidido...
- E por que não, ora essa agora! Acaso já enxerga sem eles?
- Olha, vou te dizer uma coisa: Vejo muito melhor agora...
- Puxa! Isso quer dizer que você não é mais míope! Está curado, João! Que raio de remédio foi esse?
- Tem remédio, não, menina... Remédio nenhum...
- Mas então só pode ser uma coisa! Você rezou feito um louco, não?
- Ora, essa! E desde quando sou dado à religião?
- Pois devia, viu! Eis aqui um milagre!...
- Milagre nenhum, Maria. Eu acordei e percebi que não precisava mais dos óculos pra enxergar. Simples assim, foi só acordar... E já não precisava mais deles!
- Virgem Maria! Que loucura!...
- Mas, veja bem, menina... Olha só: Você não está entendendo... Eu continuo míope. O que eu vejo agora não é nada que se possa ver, assim fácil... Talvez você, que sempre enxergou tudinho sem precisar de óculos, nunca tenha visto coisa igual...
- Assim você até me assusta, criatura!!! Quem fez isso foi o Diabo. (faz o sinal da cruz)
- Mas deixa disso, ó mulher! Meus novos olhos me fazem ver as coisas mais lindas que eu nem imaginava em sonhar...
- E que coisas são essas?...
- Posso ver cada detalhe do seu corpinho lindo... (e coloca as mãos na cintura dela)
- Ei! Pra lá, João! Mentiroso... Você é míope. Pode enxergar o que te está perto. Novidade nenhuma, isso não...
- Pois então vou te dizer o que eu realmente vejo!
- Pois bem, pode dizer!
- Vejo a Morte. Em mim, em você, no mundo... Todos mortos. A única diferença entre você e eu é que você não sabe que está morta. Eu já sei que morri. Desde que me tiraram do útero caudaloso de minha mãe... Estamos mortos, todos mortos, Maria!...
- Deus... (vertigem, mal pode sustentar o corpo)
- Deus também está morto. Depois de criar o homem, Ele morreu. Foi a sua última criação.
- Agora você já sabe...
- Sim, eu já sei!... E quis te contar depressinha...
- Mas eu já sabia...
- Já?
- Já... (Maria mostra a João o que guardara por todo esse tempo por debaixo do vestido: Um caixão. Dentro, Maria dormia, com o rosto encantado e os cabelos cobertos de flores... E entrega a João o atestado de óbito, datado com o símbolo do universo)
- Então já podemos ir...
- Vamos, então...
(Deram as mãos e caminharam até os horrores do Paraíso)

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