domingo, 13 de julho de 2008

Ana e sua sombra

Prazer, meu nome é Ana. Todo dia ao chegar em casa, deparo-me com uma multidão de vozes familiares. Sou diariamente manipulada pela mídia, mesmo ao quebrar a TV, mesmo ao desligar o computador e ao invocar aos deuses proteção. Certos fatos são difíceis de esquecer. Já estão incutidos em minha pele, em minhas unhas, em meus rins, fígado e pulmões. É preciso mais do que coragem. É preciso mais do que proteção. É preciso mergulhar no que eu tenho de mais humano, ao mesmo tempo em que encontro, dentro de meus órgãos internos, um ponto único, indivisível, indestrutível, primordial. Até mesmo muito antes de abrir a porta de casa, sinto que é preciso comer. E ao chegar, o mesmo sentimento. É preciso comer para repor energia. Mas eu nunca pratiquei esportes. Apenas os malabarismos tortuosos da mente, que se empenha a cada momento em manipular os meus ossos, cada vez mais desejosos de alimento. Enquanto isso, muita gente passa fome. Engordo a cada de refeição, de modo a precisar comer mais de três ou quatro vezes ao dia. Toda noite ao chegar em casa, eu desejo estar sozinha. Preciso comer, e não posso fabricar escudos, lanças ou punhais. Mal posso lutar contra todas aquelas vozes que me perseguem, que me destroem, e que, ao mesmo tempo, são responsáveis pelo fornecimento do conforto que eu não poderia bancar apenas com a solitude de um errante eremita das montanhas maiores. Preciso comer. Engordo por necessitar de tantas refeições todos os dias. Sinto a necessidade de comer para que os meus músculos não se tornem os meus novos inimigos. Se eu comer, tudo estará sob controle, e eu poderei engordar, e sentir que novamente eu preciso comer, para aplacar a ira dos traidores, e saciar a sede de uma horda de vilões perigosos. Comer para alimentar uma alma há muito já cansada de sofrer o abuso de uma multidão de vozes esmagadoras. Abrigo-me no espectro de um sonho. Sinto que preciso comer. Engordo a cada refeição. Não tarda para que a armadilha se repita. Reajo. Recito preces distantes, entôo alguns mantras e ladainhas. Tudo mais ou menos em vão. Ao adentrar a porta de casa, vultos de vozes me assaltam. Eles me dizem palavras rudes, e eu sei de tudo quanto eu sinto. Intuitiva, pressinto a necessidade de comer. Até que eu engorde e me convença de que não há solução outra além do vício, eterno martírio de me condenar à ilusória e idealizada busca da perene satisfação. Quanto à dieta das frutas, se eu comer só salada e verduras, mesmo assim eu engordarei. Estou acostumada, acomodada, e apenas um novo condicionamento, ainda mais forte, a mim apontará uma nova direção. Preciso saciar a fome de meu espírito. Saciar a fome de meus novos quilos. Sou meu corpo, mas também sou minha alma. A matéria do espírito não se separa. Sei que preciso comer. Comer o símbolo vivo. Despertar para o eflúvio giro etéreo do Destino. A cada dia é preciso ter coragem. É preciso ter proteção. É preciso aceitar que, ao contrário do que eu te fiz acreditar, é sim, preciso comer. Se eu parar de comer, o que farei para alimentar a minha alma, uma vez que é impossível dissociá-la de meu corpo? A matéria do espírito não se separa, a matéria do espírito não... Como alimentá-la, alimentar a minha alma? Onde se encontrará a fonte que alimenta a semente que se encerra no âmago de minhas metas mais fatais?!... A resposta está em ti mesma, que te enganas ao dizer, em meu nome e sobriamente, que não deves mais comer.