sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Colóquio artesanal

Ele tinha um gosto desconhecido. E eu lutava contra as minhas pernas, pois elas me guiavam para lugares ancestrais, e no tempo presente eu apenas podia reconhecer o riso gelado de muitas vozes que jogavam para ganhar. Elas me julgavam, por não aceitar o meu comportamento vulgar. Eu vacilava. Flutuava ante a ausência, coisa alguma, que não se poderia explicar a céu aberto. Mas eu precisava respirar. E demorei a me permitir a clausura. Ele tinha um gosto que me lembrava das muitas estrelas desaparecidas do além-mar. Não sabia se estavam mortas, mas reconhecia que não poderia vê-las por muito tempo. Talvez não as visse no quintal, talvez eu sonhasse com a luz de astros que há milênios residiam há milhas do sistema solar. Ele insistia para que eu parasse o sofismar. Iludia-se, eu mal poderia dizer a mim mesma o que esperar. Ele era tudo o que eu poderia querer, pois nada além dos seus olhos era o bastante para me perseguir pelas infindáveis horas do dia, da noite, da alvorada, dos minutos, do nunca mais. Como ele achara tempo para fugir às obrigações do planalto? Seguro-me, pois sou forte e poderia sustentar o cismar de um déspota aterrador. Sobrevivo à falta de ar. Muito mais. Afogo-me quando ele me esconde, de propósito, as águas do mar.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Imperatriz

Já tive muita raiva. Exasperava. Fugiria para o Himalaia caso pudesse. Subiria aos céus. Desceria aos malogros da terra roxa. Eu não saberia, não entenderia para onde deveriam os ares me levar. Mas não. Em momento algum desejei sumir contigo. Irava tal pimentão. Chorava de ranger cartilagens, não dormia antes de ver pus e sangue pingando das mãos. Ilusões dissipadas pelos sonhos e pela noite. E ao me olhar, olhava-te, e tinha a certeza de que a genética era parte dos astros e do cosmos e de que eu nunca poderia me separar de ti. Bem sei que estás a milhas de meu humilde condado. O aluguel está atrasado, faltam-me os ingredientes essenciais para que eu possa cozinhar a receita da vida. Mordo-a, e sinto-a crua. Muitos anos se passaram em vão. Gira a roda estéril que não nos tira do chão. O desgaste a que fora submetida te faz pensar que não sinto a falta do teu calor. Sinto que tuas mãos estão frias, tuas bochechas estão congeladas, teus braços estão trancados, e teu peito envenenado. Acusa-me de ter roubado de ti o fogo. Acuso-te de ter roubado o fogo de ti mesma. Não sei como te explicar. Um olhar bastaria, já que eu não poderia abraçá-la sem trincar o gelo das tuas pálpebras. Pois às vezes sinto que as calotas polares derreterão muito antes da tua Fortaleza.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Nominus

Eu não quero ser como ela. Que diz não acreditar em Deus, mas faz questão de montar a árvore de natal. Tampouco quero ser como ele. Estava com a vida perdida, e mesmo assim insistia pra eu assistir O Segredo e pensar positivo. Uma semana depois ele virou um homem de negócios. Também não quero ser como eles, que se desentendem ao rabiscar com tinta as folhas do jornal. E têm a estranha mania de fumar todas as pontas. Quero o embaraço das coisas mais simples. Quero usar duas lentes transparentes no meu rosto. Presas por um aro. Atrapalho-me toda. Esqueço-me de guardá-los. Às vezes até me esqueço de viver. Só porque as lágrimas já secaram. Mal pude perceber os olhos teus!...

sábado, 29 de novembro de 2008

Self

Eu não sei o meu nome. Por não sabê-lo, assumo variadas identidades. Algumas me perseguem. Persigo-as também. Deixo-as entrar. Elas estão em mim, o tempo todo.
Sou um aglomerado de células nervosas. Às vezes, a afasia é o que sobra de todo este desperdício. Explico-me, mas ao contrário. Afinal, quem entenderia tais divagações? Procuro pelo meu nome. Encontro um espelho. Procuro-te, em seguida, ao lado de uma agenda vazia. Vigio o pequeno lago das águas turmalinas. O que vejo é o reflexo de um ente desconhecido, encimado pelos valorosos segredos do anonimato.

domingo, 16 de novembro de 2008

Vanessa e o Carma

Eu, Vanessa dos mares. Das torres, dos mastros, dos anéis e das montanhas. Eu, que a andar pela noite, a contar amantes que sei, só de olhar, não mais eu verei. Eu a colher ervas e caldos, a escolher sem ponderar. Ao evitar o nada, e contrabandear alucinógenos da natureza. Admito, advirto, todavia: O tempo não existe. Mas não me peça para esperar: De algum modo, não sei te explicar, mas eu sei que o tempo está acabando, mesmo ele não existindo. Em última instância, eu diria, talvez eu nem esteja realmente falando do tempo. Estou me acabando. Estou terminando. Há algo a nascer de mim, e não sei como expressá-lo. Não direi que estou envelhecida. Não o bastante para que eu não me reconheça ao olhar para o espelho. Pelo contrário: Cada vez que olho para mim mesma, sinto que as mudanças externas só reforçam o que eu sou. O que eu estou. O que estou me tornando. Mudo minha vida, mudo o meu cabelo. Mudo as sete cores, a terra roxa e o infinito. Mesmo assim, pedes a mim para esperar. Aquela espera, não diria uma entrega, pois há muita ação envolvida nessa infindável pausa para depuração. Entretanto, existe algo a se derramar, algo está sendo perdido. Pois ao olhar para o reflexo do lago artificial de uma avenida, vejo as flores caírem com muito mais freqüência. E tenho a certeza que é preciso ser alguma coisa. Não digo que há algo a ser feito, pois bem sei que não é preciso fazer nada. É preciso apenas estar. E mesmo para estar é preciso ser alguma coisa. Mudam-se as estações. Qualquer coisa, passageira, qualquer coisa como um barco a se guiar pela direção do vento, sem saber para onde sopra o vento, sem saber para onde gostaria de fazer o vento soprar. Quando eu era menor, ainda cercada pelo amor e pelo carinho da família. Num castelo cercado por quatro paredes. Quando eu era menor, ainda alimentada pela expectativa de ocupar no mundo ilustríssimo lugar. Quando eu era menor, veja bem, eu era muito menor. Jamais entenderia que isto, verde e brilhante que eu bebo, não significa muita coisa além de um líquido que valeria uma boa fotografia. E se alguém olhasse para ela, pensaria no passado, no presente e no futuro. E lembraria coisas que poderiam acontecer no exato momento em que respiraria o ar gelado de um fim de domingo nada promissor. O gosto verde de uma fotografia. Cresço. Mas entenda que o meu crescimento nada tem a ver com a maturidade, com a responsabilidade, com a ética, com a moral. Disso cuidarei junto aos anjos. Assim que me libertares da espera. Levanto-me: A espera é exaustiva. E mesmo que o céu se derrame em lágrimas, rumarei sem norte nem remos. Pois, às vezes, de repente, as correntes simplesmente existirão, e não haverá ninguém para soltá-las. E isso não será bom ou mau. Existirá apenas, assim como as nuvens escuras criadoras das tempestades. Levanto-me. Com ou sem as correntes. E se o tempo existisse, e mesmo se o tempo acabasse, eu estaria acorrentada, sim. A forjar trilhas, a provar para mim mesma que estou andando. Acorrentada, talvez. Ainda assim, a andar. Sou Vanessa, rainha daninha. Um inseto a se debater contra o vidro de um aquário. E sou, dentro disso, o meu melhor. Serei feliz para sempre. E sempre o serei.

sábado, 8 de novembro de 2008

Ana, o Paraíso e a Consolação

Vou pra longe, mar aberto, vou pro porto, pro aconchego. Vou pra onde o Sol não se põe ao término do verão. Onde os homens passeiam sossegados ao cair das tardes preguiçosas. Onde não é preciso dizer coisa alguma, uma vez que existam um olhar e pernas e sorrisos que falam através de seus movimentos. Da espontaneidade. De uma lágrima. Pra que servem as pernas senão para sorrir através dos nossos olhos?!... Sustentam os nossos pés, que, por sua vez, sustentam a própria vida. Vou pra onde exista pranto, pulso, percussão. Palmas, pés, tornozelos e mãos. Talvez eu nem volte mais. Melhor ires comigo, e bem depressa. Se parares para pensar, acordarás e verás que estou perdida, e que tudo isso é muito mais do que um sonho. Quem sabe uma convulsão.

domingo, 2 de novembro de 2008

Naerto:

Não penses que as flores já morreram e que o verão não voltará. Estás imerso no caos e na cobiça dos fracos, mas nada te pode abalar. Nos primórdios deste grande espetáculo, vermes rastejavam no jardim, e o quintal flutuava como bolhas de sabão ao luar exagerado de um jogral. Nada existe além de penas e pernas, tinta fria e automóveis e pés de feijão que ainda não germinaram. Sente tu a vida e acredita na exatidão dos pólos. Agarra-te ao vento e aos faróis do oceano. Reflete o ócio e a brisa. Que poderias a mais desejar enquanto o mundo está, sereno, a se acabar?!... Converte-o em amplidão. E nada te faltará. A porta continua aberta, e não precisas esfregar os teus pés embriagados antes de entrar. Traga apenas a tua presença – inteira e absoluta, e verás que a revolta dos mares é apenas a amplitude dos pólos. Tudo o que sentiste em meio ao pavor de dias e noites intermináveis, tudo isso é amar o que quase se pôde alcançar. Se soubesses o quanto te estimo, sei que ainda assim estarias junto aos anjos andarilhos do norte escuro. Entretanto, talvez ao menos eu tivesse a certeza de que estarias em paz. Olho por ti, Naerto, a última estrela do céu, morta e exposta às multidões por anos e anos e desertos. Serias feliz?!...

terça-feira, 28 de outubro de 2008

O Tempo

Eu achei que era o céu, mas eu só era o reflexo cinzento do azul mais profundo do mar. Eu achava que era reflexo, mas era apenas uma sombra. Eu achava quer era o sono, que era a ti dormindo após injetar líquidos doloridos. Mas eu era o próprio líquido, e tu é quem eras o sono. Eu achava que poderia mudar o mundo. Quem nunca achou? Mas como mudar as luas e os carros e as marés? Orgânico demais. Sou tudo ao mesmo tempo. Sei que também não sou nada. Mediana. Expressivamente mediana. Especializo-me: Sou a margem, os rochedos, um pardal no Índico distante. Sou tudo quanto eu poderia ser, na medida em que te aproximas dos meus calcanhares. E ao piscar pálpebras e olhos, sou a superfície de um lago antigo. Milhares de anos depois, eu ainda estarei lá. Ninguém saberá, tão mudada estarei. Mesmo assim, serei a mesma, e ainda saberás exatamente onde me procurar.

domingo, 26 de outubro de 2008

Lundy

Olho para o céu e pergunto às estrelas o porquê da existência. Na cidade. Talvez seja menos, numa vila. O prateado do grande manto celeste me sussurra as mensagens silenciosas do vento. Entre o campo e a cidade, a ilha. Entre o chão e céu, supostamente as estrelas. Olho para o céu e, na falta das estrelas, me vejo conversar com o vento. Há muito a poluição já chegara ao vilarejo.

sábado, 11 de outubro de 2008

Sete de Espadas

Se eu fosse um peixinho e soubesse nadar eu te levaria pro meu quintal de medusas e te deixaria lá por uns tempos. Livre dos poros do mar, imerso no cloro do mar. Joguei muito cloro no mar. Pra te entender. Não dá pra pensar, nada mais, como assim não és Coquinho? (suspiros e mais platonismos...) Além de todas e quaisquer utopias, segues incauto e com o vento a endireitar-lhe os cílios salientes todas as vezes que neva no Equador. Quando eu crescer vou pedir aos anjos do céu para me protegerem de você. Vou pedir a eles também, que te protejam, pois pode ser que você vá precisar. Não é todo dia que se pode, ou não, escolher ter a vida em risco. (E boa viagem?!...) Aqui, tens razão, é muito fácil alguém se perder.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

São Paulo e as Brumas de Avalon

Às vezes é preciso, Paulo, retirar-se do mundo. Abrigar-se em águas claras e esquecer, por alguns instantes, de que há coisas das quais não podemos fugir. E nesse meio tempo, deixemos apenas, Paulo, que a natureza, através das recônditas memórias humanas, aja sobre os seres, transformando-os e cumprindo a sua missão.

(Dizem que a comunicação entre os homens é das maiores dádivas terrenas. Muito tenho a questionar. Menores as palavras, maiores os desentendimentos).

Ao olhar para o teu rosto e ouvir as tuas palavras, meu coração se encheu de uma alegria que eu não conhecia. (Há coisas que não podemos fingir). Mas os teus olhos estavam distantes. Acabaram de voltar de uma longa peregrinação, e lá muito sofreram. Teus olhos desejavam as brumas. Mesmo assim, expressavam os traços da paz.

E desde então, sigo, Paulo, enfeitiçada pela tua respiração, a evocar as águas claras e longínquas de Avalon. Enquanto eu puder sentir o pulsar dos teus olhos. E para tanto, Paulo, acredite: Não é necessário deixar a cidade...

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Seis de Copas

Olhando para o teu rosto, eu diria que és um anjo, pois assim se descrevem os anjos aqui na Terra. Olhos claros, cabelos claros, pele clara. Claras as tuas feições. Serenas. Transparentes. Mas não tão claros os teus pensamentos. Por mais que a tua simplicidade espontânea seja confirmada desde o posicionamento dos astros no momento exato da tua aparição oficial dentro desse planeta. Olho para as nuvens, imaginando lírios num campo ensolarado. Que mais eu poderia esperar da vida além das flores e das nuvens e de todos os teus velados encantos? Ao redor, os computadores. Mentalizo ilhas tropicais em meio à seca. Procuro entender que não posso desejar para sempre o mesmo sonho. Nada é para sempre, assim aprendemos, ao que nos parece. Os anjos também não são para sempre? Este mundo é, tantas vezes, além de toda e qualquer compreensão. Sobretudo para mim, que sinto não pertencer a lugar algum. Não possuo o sustentáculo da identidade, e me esforço para parecer alguém, qualquer outra, outra qualquer, qualquer uma, apenas mais uma. Este lugar, um grande teatro, onde é difícil distinguir entre máscara e essência, entre o ser e o parecer, entre o céu e a terra, entre as tuas palavras escassas e a intensa profundidade que se esconde em teus traços bem marcados. Nada é para sempre, assim a vida nos dita. Mas será que não é para sempre esse aperto que não passa, depois de todos esses anos, depois de todas essas noites, depois de todas as trilhas repletas de folhas escuras e o céu fechado e nebuloso a pairar, soberano, e intermitente no horizonte? E quanto às sutilezas que o teu aceno mais discreto é capaz de despertar numa alma adormecida? Para sempre, a certeza de que tudo quanto parece não ser nada guarda em si a água da vida.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

São Paulo, SP

“Observo, atentamente, Paulo, ao teu nome envolto em plástico. Medito através da solidez da tua presença, mesmo quando os meus olhos não podem tocá-lo (pois bem sabes que os olhos são capazes de mover as montanhas). Sigo inebriada pelo deslizar das tuas palavras, ainda a ecoar por toda esta sala, por todos esses dias. Neste momento a vida é, para mim, Paulo, uma lembrança das sutilezas mais banais... É mistério dentro do óbvio. É magia num poço de monastério. És, agora, para mim, Paulo, mais concreto do que o asfalto de todas as ruas da cidade.”

domingo, 31 de agosto de 2008

Resumè

Era uma vez, uma pilha de documentos que não serviam para nada. A pilha às vezes saía do prazo, e era necessário reconstruí-la. Três anos se passavam para que o trabalho fosse refeito. Três anos depois, a nova pilha de documentos continuava a não servir para nada. Curiosamente, entretanto, ela era responsável por identificar e catalogar todos os seres. Naturalmente, todos esses seres eram tudo, menos aquilo que constava em suas respectivas pilhas. Muitas expectativas foram geradas, e os seres há muito já não lutavam contra tão sinistro condicionamento, e passaram a se identificar com o conteúdo de suas pilhas. Perversos disfarces e sutilezas entrecortavam suas vidas cheias de sonhos. Sonhos de um ventre amordaçado, baseados em documentos, e que, conseqüentemente, não eram realmente seus. Além disso, mesmo quando um deles suspeitava da verdade, ainda assim era necessário manter em dia a sua pilha. Pois seria a tarefa de uma vida convencer todos os outros seres do contrário, e tirar-lhes, a um só golpe, todas as suas certezas, construídas ao longo de séculos e mais séculos de civilização.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Um pouco de tudo e ainda mais

Os carros e os ônibus passam muito rápido na madrugada. É preciso correr para alcançá-los. O Sol está nascendo, mas é preciso acenar para o motorista do ônibus. Com um pouco de sorte e bom humor, é possível alcançá-lo. Correr e subir as escadas. Na madrugada. É quase um lampejo. Um despertar. Uma lembrança. Recupero o todo à custa das partes. Dos cinco sentidos legendários, recupero os tremores e espasmos. Teus olhos se confundem com o nariz e a boca. Os cabelos e os olhos e os ouvidos. Os lábios, pernas, e calcanhares. O teu peito e as tuas mãos, e os tremores e os espasmos. Ao mesmo tempo, me é difícil reconstituir cada uma de tuas partes. Os veículos muito rápidos atravessam a madrugada. É preciso convocar o motorista. Por dentro. Sinto calor. Lá fora faz muito frio, mas confundo os teus olhos, e embora eu veja os teus braços, percebo os teus olhos e sinto os teus ombros. Não há tempo. Retorno à madrugada e aceito a novidade turbulenta da vida. Aceito as responsabilidades tortuosas da vida. Nada disso faz sentido agora. Mas não importa. Aceito a importância da falta. Acolho o incógnito. Abraço o estranho. Transmuto-o em êxtase divino. Mergulho em direção à alvorada. Dos cinco sentidos legendários... Os teus braços, tuas mãos, os teus olhos e cabelos. Suspiro com a calma tibetana de um pássaro. Ainda é possível sorrir. Ainda é possível sonhar. Quem diria pensar que sofrerias do medo da solidão... Há tantos anos. Por todos estes anos. As poucas palavras... A solidez de uma rocha. A se esconder por entre enigmas arbitrários. Como poderia! Sigo em paz. Ausente da tua presença. Coberta pelo reflexo da tua alma. Pelas entrelinhas da tua sombra. A caminho de novas vanguardas. A tolerar anacronias... Sigo em paz. Consciente. Dormente. Contemporânea...

sábado, 9 de agosto de 2008

Madrugada

Acordo no meio da noite, e embora não tivesse dormido sequer um par de horas, o sono, aos poucos, já se transformara em doses excessivas de dores abdominais. Debato-me contra a cama, contra a parede, o travesseiro. Contraio-me em direção ao chão e talvez à última derrocada de mais um ciclo. Idealizado, dolorido e necessário. Não fossem as cólicas de morte, não haveria disposição para relembrar, forçosamente, o verde denso dos teus olhos (Interrupção). Sangro até a perda da vida. Estou louca. Aos poucos, percebo que estou cansada, e meu corpo pressente a necessidade de cuidados paternos. Observo-me com atenção. Acompanho, com a lucidez dos loucos, os detalhes de cada expressão do meu rosto. Delicada agonia. Mentalizo, para aplacar a dor e os desejos da carne: “Eis o meu rosto. Isso é tudo quanto posso saber sobre mim”. Sou uma atriz lancinante. Uma hora e meia após o primeiro comprimido, misturo medicamentos. É preciso dormir ainda agora. Retorno ao espelho: ele reflete um rosto exausto, pálido e sedutor. Relembro novamente o verde denso dos teus olhos expressivos. Terão eles a mesma expressão da dor desesperada do meu rosto? Debato-me ainda contra a parede. Tento outras posições. Olho para o chão violento. Não sei até que ponto a violência pertence ao chão. (Meu pai, onde está você? Que eu fiz da nossa vida?) Não sei até que ponto a violência pertence ao chão ou aos meus olhos, que não são verdes. São olhos escuros e guerreiros de muitas batalhas. Perderam a inocência e a clareza de suas orbes. Afundo-me contra o ralo do banheiro. Estudo as expressões reveladoras do meu rosto. Confirmo nato talento para a encenação. Finjo a dor que meu corpo deveras sente. Apago-me em gritos abafados e ruídos enclausurados. Penso em ir ao médico. Penso em forjar atestados. O verde, o desejo, o denso espectro de um sonho. A dor e o espelho e o chão. O ralo, as paredes, os atores, a encenação. Palavras repetidas. Pouco sentido. Pouca vida. Amplamente o verde denso dos teus olhos. Tu, que não me conheces. Tu, que me alimentas. Portador de grande potencial criativo. O horizonte. No horizonte... Debato-me contra a cama. Os olhos do meu pai também são escuros. Não são claros como os teus. Mas nem por isso deixam de conter o toque enigmático que me impele ao teu encontro. A me assombrar. Nesse momento que, por natureza, seria atemporal, não fosse a linha do tempo linear e cheio de moedas. Talvez não haja espaço para a dor. Talvez o tempo não exista (Construto artificial). A dor não me impede de sentir desejos incestuosos (Duas horas de agonia). Contraio os músculos e os ossos. Aguardo o nascer do Sol. Reticente. Vazia. Não há motivos para mais explicações. O momento pelo momento. Dispensa esclarecimentos e argumentos e mais contradições. A dor, aos poucos, se dissolve no sentido absoluto do agora. Já é tarde, e ao mesmo tempo é muito cedo. Deixarei a ti para cuidar do meu sono. Restam-me três quartos de hora. Aguardarei o nascer do Sol. Reticente... Paciência.

domingo, 13 de julho de 2008

Ana e sua sombra

Prazer, meu nome é Ana. Todo dia ao chegar em casa, deparo-me com uma multidão de vozes familiares. Sou diariamente manipulada pela mídia, mesmo ao quebrar a TV, mesmo ao desligar o computador e ao invocar aos deuses proteção. Certos fatos são difíceis de esquecer. Já estão incutidos em minha pele, em minhas unhas, em meus rins, fígado e pulmões. É preciso mais do que coragem. É preciso mais do que proteção. É preciso mergulhar no que eu tenho de mais humano, ao mesmo tempo em que encontro, dentro de meus órgãos internos, um ponto único, indivisível, indestrutível, primordial. Até mesmo muito antes de abrir a porta de casa, sinto que é preciso comer. E ao chegar, o mesmo sentimento. É preciso comer para repor energia. Mas eu nunca pratiquei esportes. Apenas os malabarismos tortuosos da mente, que se empenha a cada momento em manipular os meus ossos, cada vez mais desejosos de alimento. Enquanto isso, muita gente passa fome. Engordo a cada de refeição, de modo a precisar comer mais de três ou quatro vezes ao dia. Toda noite ao chegar em casa, eu desejo estar sozinha. Preciso comer, e não posso fabricar escudos, lanças ou punhais. Mal posso lutar contra todas aquelas vozes que me perseguem, que me destroem, e que, ao mesmo tempo, são responsáveis pelo fornecimento do conforto que eu não poderia bancar apenas com a solitude de um errante eremita das montanhas maiores. Preciso comer. Engordo por necessitar de tantas refeições todos os dias. Sinto a necessidade de comer para que os meus músculos não se tornem os meus novos inimigos. Se eu comer, tudo estará sob controle, e eu poderei engordar, e sentir que novamente eu preciso comer, para aplacar a ira dos traidores, e saciar a sede de uma horda de vilões perigosos. Comer para alimentar uma alma há muito já cansada de sofrer o abuso de uma multidão de vozes esmagadoras. Abrigo-me no espectro de um sonho. Sinto que preciso comer. Engordo a cada refeição. Não tarda para que a armadilha se repita. Reajo. Recito preces distantes, entôo alguns mantras e ladainhas. Tudo mais ou menos em vão. Ao adentrar a porta de casa, vultos de vozes me assaltam. Eles me dizem palavras rudes, e eu sei de tudo quanto eu sinto. Intuitiva, pressinto a necessidade de comer. Até que eu engorde e me convença de que não há solução outra além do vício, eterno martírio de me condenar à ilusória e idealizada busca da perene satisfação. Quanto à dieta das frutas, se eu comer só salada e verduras, mesmo assim eu engordarei. Estou acostumada, acomodada, e apenas um novo condicionamento, ainda mais forte, a mim apontará uma nova direção. Preciso saciar a fome de meu espírito. Saciar a fome de meus novos quilos. Sou meu corpo, mas também sou minha alma. A matéria do espírito não se separa. Sei que preciso comer. Comer o símbolo vivo. Despertar para o eflúvio giro etéreo do Destino. A cada dia é preciso ter coragem. É preciso ter proteção. É preciso aceitar que, ao contrário do que eu te fiz acreditar, é sim, preciso comer. Se eu parar de comer, o que farei para alimentar a minha alma, uma vez que é impossível dissociá-la de meu corpo? A matéria do espírito não se separa, a matéria do espírito não... Como alimentá-la, alimentar a minha alma? Onde se encontrará a fonte que alimenta a semente que se encerra no âmago de minhas metas mais fatais?!... A resposta está em ti mesma, que te enganas ao dizer, em meu nome e sobriamente, que não deves mais comer.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Marina

Ah, se eu fosse Marina, Marina das tulipas!
Levantar-me, todos os dias!...
Todo dia trabalharia...
Todos os meses, todos os dias!

Ah, se eu fosse Marina, Marina das colinas!
E como eu estudaria...
A banhar-me todos os dias!...
Tardes noites, noites e dias!...

Compraria mercadorias.
Partiria maçãs, vitaminas...
Colheria mais simpatias...

E, ainda, nas horas vadias,
Dormiria e meditaria...
Ah, mas não sou Marina!...

Não conto e não canto cantigas...
Em vão visualizo manilhas...
Não sei manejar as planilhas.

Em delírios e mais ladainhas,
Queimei o pudim de baunilha...
Suspiro – oh, estertor desta vida...

Oh Marina dos mares fecundos...
Marina, marés e marujos...
Marina, dos sonhos profundos...

Marina não tem um príncipe. Marina não tem um par. Marina me visitaria. Marina, amiga, apatia... Marina, doce magia... Se eu morrer, a ti dedicarei, Marina, todas as cartas de amor que escrevi. Pois és fada divina e festiva. E o teu homem há muito já se foi (ou talvez ele nem tenha chegado). A ti, dedico, Marina, toda a honra e todas as lágrimas de mais uma, dentre tantas,
Despedidas.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

O Estranho

Os estranhos ligam para a minha casa. Eles ligam para a minha casa e desligam na minha cara. Os estranhos se confundem, e acabam por discar o número errado. Não sabem que estou de férias em minha casa na beira do lago. Não sabem que foi sem querer aqueles dias em que eu liguei o som muito alto, alto o bastante pra que eu me esquecesse o que estava acontecendo dentro de casa. A casa estava vazia, mas todos reclamaram. Eu mal sabia que ainda existia vida dentro de toda aquela ausência tão dispersa, tão marcada pela transcendência dos missionários que viajam pelos mares em busca de um sentido muito maior do que o de estar em casa atendendo a ligação de um estranho. Pois quem está em casa sempre estará sujeito a atender o telefone e se deparar com a voz vazia e autoritária de um engano. Eu mal lembrava que ainda há poucos momentos, um estranho havia me ligado, e que ele havia discado o número errado, e ele desligou o telefone sem ao menos se despedir. Eu ainda estava sob o efeito da altura daquelas notas, eu não estava entendendo porque ele havia me abordado se iria embora sem ao menos dizer adeus. Sem se apresentar, e sem me dizer que o mundo ainda é o portador oficial da beleza das vozes misteriosas que nos chegam através da física, dos faróis e cabos e conexões de uma empresa que muito preza pelo meu bem-estar. As empresas não sabem, mas elas são muito mais do que as mediadoras entre casas e telefones. Elas não sabem, pois se o soubessem, estariam fora de si mesmas. Eu não podia evitar aumentar o som muito alto, na esperança de ouvir novamente a voz do estranho que me ligava todos os dias. Mas novamente, a casa estava vazia. E as reclamações eram proferidas por vozes ausentes. Mas elas eram cada vez mais intensas e mais coerentes, a tal ponto que comecei a questionar se eu realmente estava sozinha. Mal posso discernir a voz de tantos estranhos, e chego a uni-las de tal modo, que começo a sentir alucinações e espasmos no quadril, e cada vez mais, percebo aquelas ligações como destinadas a mim. E então eles desligariam o telefone sem ao menos se despedir. E então eu perceberia a voz de cada um deles como uma única voz. E eu sei que não muito longe daqui, uma mulher se esqueceria de viver, tal o afinco com que se dedicava a retirar uma mancha de café do seu diário – e pasmem: com um giz, apenas com um giz! Ela purificaria todos os diários das eventuais manchas de café do mundo valendo-se de apenas um giz. Mas veja bem: O preço da purificação é muito alto. Ela era indiferente ao telefone que gritava sem parar. Recusara-se a receber ligações. E nesse momento, sinto-me aliviada por saber que eu ainda recebo a voz de um estranho, já que eu não entendia se as ligações se destinavam diretamente a mim. As vozes me percorrem tais como o fariam se houvesse uma ponte entre elas e o seu destino final. Sei que as vozes dos estranhos me comovem, me perseguem... E as vozes me percorrem como a água de um banho fervente em minhas pernas. Mas assusto-me ao lembrar que eu mal ouvia o vento sussurrar o seu silêncio quando eu aumentava o rádio sempre ligado. Encontrava na sonoridade delicada dos timbres orientais o silêncio que não me era possível captar através dos sussurros do vento. E eu estava de férias e em casa. De férias na casa do lago. E eu não entendia o motivo de tantas ligações, e do estranho que prostituía a sua voz para depois ir embora sem ao menos dizer adeus. E então, vozes ausentes reclamariam. E eu não entenderia se estava sozinha. E eu só poderia ouvir os sussurros inspiradores do vento quando percebesse que aquela voz era tão verdadeira quanto os moradores inexistentes de minha casa. E eu nunca saberia explicar se todos aqueles estranhos eram de fato, a mensagem de uma única voz, ou retalhos esparsos e disformes a sinalizar a pobreza dos meus meios de comunicação.

sábado, 19 de abril de 2008

Para mim mesma

Isabella foi jogada da janela pelos pais. Ela morreu, e suas mãos estavam sujas de sangue, pois junto dela, muita gente também morreu. Gente que antes dela não tinha assunto pra comentar. Eles pensam ter achado motivo pra analisar, refletir, criticar. Mas, de fato, não há muito o que fazer, pois lá no café do mercado grande há uma fila muito grande, grande demais. Os executivos não querem esperar e até mesmo a gente do povo tem dificuldade em conseguir um pouco de açúcar para o café. De fundo, música de morte. Música, baixinho, de velório, com sininho. Som ambiente, muito mais sutil do que aqueles encontrados no elevador. Porque os mercados acoplaram-se aos shoppings, e lá há muitos produtos, muitos consumidores que passeiam por lá. Eles têm vontade de comprar coisas de que não precisam, mas eles ainda não têm nem mesmo o que eles precisam. Mesmo quando não há luz, luz artificial, e os geradores plagiam eletricidade pelos corredores. E em dadinhos transparentes reluziam bonequinhos e luzes, e muitas pernas e saias. Eram todas da minha mãe. Ela fica tão linda nas vitrines. Linda de uma beleza coberta de lágrimas. Betty Boop não vestia mais vermelho. Era branca e cansada de sangue. Cansada de lutar batalhas cujo fracasso já se modelara antes mesmo da invenção dos primórdios da etiqueta, da eloqüência, das vitórias, das bolas de cristal. E ele estava em minha direita, o quatro obscuro e procurado, o quadro de moldura incerta escolhido pelo meu novo copo de Pocahontas. Meu pai, it clariciano da história, e que nada tem a ver com o ele que descrevo, não sabia o quanto eu gostava das simplicidades exóticas contidas num líquido nutritivo, embalado em papelão (Como eu gostava de suco de abacaxi e côco!). De algum modo, algo de mim estava dentro daquele copo, e ele me beijava e sorria para mim. E eu sei que nós sumiremos juntos e, não fossem os preservativos, teríamos muitos filhos sob as palmeiras das ilhas menores da Indonésia.