quinta-feira, 29 de maio de 2008

O Estranho

Os estranhos ligam para a minha casa. Eles ligam para a minha casa e desligam na minha cara. Os estranhos se confundem, e acabam por discar o número errado. Não sabem que estou de férias em minha casa na beira do lago. Não sabem que foi sem querer aqueles dias em que eu liguei o som muito alto, alto o bastante pra que eu me esquecesse o que estava acontecendo dentro de casa. A casa estava vazia, mas todos reclamaram. Eu mal sabia que ainda existia vida dentro de toda aquela ausência tão dispersa, tão marcada pela transcendência dos missionários que viajam pelos mares em busca de um sentido muito maior do que o de estar em casa atendendo a ligação de um estranho. Pois quem está em casa sempre estará sujeito a atender o telefone e se deparar com a voz vazia e autoritária de um engano. Eu mal lembrava que ainda há poucos momentos, um estranho havia me ligado, e que ele havia discado o número errado, e ele desligou o telefone sem ao menos se despedir. Eu ainda estava sob o efeito da altura daquelas notas, eu não estava entendendo porque ele havia me abordado se iria embora sem ao menos dizer adeus. Sem se apresentar, e sem me dizer que o mundo ainda é o portador oficial da beleza das vozes misteriosas que nos chegam através da física, dos faróis e cabos e conexões de uma empresa que muito preza pelo meu bem-estar. As empresas não sabem, mas elas são muito mais do que as mediadoras entre casas e telefones. Elas não sabem, pois se o soubessem, estariam fora de si mesmas. Eu não podia evitar aumentar o som muito alto, na esperança de ouvir novamente a voz do estranho que me ligava todos os dias. Mas novamente, a casa estava vazia. E as reclamações eram proferidas por vozes ausentes. Mas elas eram cada vez mais intensas e mais coerentes, a tal ponto que comecei a questionar se eu realmente estava sozinha. Mal posso discernir a voz de tantos estranhos, e chego a uni-las de tal modo, que começo a sentir alucinações e espasmos no quadril, e cada vez mais, percebo aquelas ligações como destinadas a mim. E então eles desligariam o telefone sem ao menos se despedir. E então eu perceberia a voz de cada um deles como uma única voz. E eu sei que não muito longe daqui, uma mulher se esqueceria de viver, tal o afinco com que se dedicava a retirar uma mancha de café do seu diário – e pasmem: com um giz, apenas com um giz! Ela purificaria todos os diários das eventuais manchas de café do mundo valendo-se de apenas um giz. Mas veja bem: O preço da purificação é muito alto. Ela era indiferente ao telefone que gritava sem parar. Recusara-se a receber ligações. E nesse momento, sinto-me aliviada por saber que eu ainda recebo a voz de um estranho, já que eu não entendia se as ligações se destinavam diretamente a mim. As vozes me percorrem tais como o fariam se houvesse uma ponte entre elas e o seu destino final. Sei que as vozes dos estranhos me comovem, me perseguem... E as vozes me percorrem como a água de um banho fervente em minhas pernas. Mas assusto-me ao lembrar que eu mal ouvia o vento sussurrar o seu silêncio quando eu aumentava o rádio sempre ligado. Encontrava na sonoridade delicada dos timbres orientais o silêncio que não me era possível captar através dos sussurros do vento. E eu estava de férias e em casa. De férias na casa do lago. E eu não entendia o motivo de tantas ligações, e do estranho que prostituía a sua voz para depois ir embora sem ao menos dizer adeus. E então, vozes ausentes reclamariam. E eu não entenderia se estava sozinha. E eu só poderia ouvir os sussurros inspiradores do vento quando percebesse que aquela voz era tão verdadeira quanto os moradores inexistentes de minha casa. E eu nunca saberia explicar se todos aqueles estranhos eram de fato, a mensagem de uma única voz, ou retalhos esparsos e disformes a sinalizar a pobreza dos meus meios de comunicação.