quinta-feira, 1 de novembro de 2007

A noite mais triste da primavera

Sei que o mundo iria se acabar. Pouco faltava: E ela, lá, sentada, não saía do sofá... Estava cansada por causa de mais um dia de trabalho. De fato, tudo mudara, e sua nova vida a esgotara terrivelmente. Talvez a ponto de, ao fim do dia, ela se esquecer do pulsar do mundo. Sentada no sofá - pois a sua casa abrigava muitos cômodos - confinava uma grande família: Distribuídos em seus quartos gelados. E ela estava no sofá. A cozinha já vazia, nem mesmo uma broa. Quanto mais um bolo... Todos a deixaram lá, sentada. Precisavam voltar aos seus quartos o mais rápido possível.

Na verdade, ninguém sabe o que é sentar naquele sofá enquanto o mundo está a se acabar. Não se sabe, apesar da nossa tamanha perspicácia. Apesar da sutileza dos nossos passos após o jantar. Dos nossos rastros silenciosos em direção a tantos outros aposentos. Do nosso descaso, do nosso abandono. Gente abandonada que, em resposta ao abandono resolveu abandoná-la, gentilmente, no sofá. Sem nem mesmo avisá-la. Sem fazê-la desconfiar do fim do mundo. Sentada, a tecer outros tempos, outros muros, outros murmúrios. A pensar que toda a verdade residia em sua própria criação. Não suspeitava que o seu passado era inexistente e não nos pertencia.

Enquanto voltávamos aos nossos quartos, esquecemos de reconstruir as ruínas primordiais. Hesitar, só em tempos de paz. Quem é louco de fazer da guerra um caos ainda maior? Pois então – pensamos – que assim seja. E distribuímos entre nós munições diversas e com cheiro de salsa. A guerra bem temperada, a guerra política. A guerra das modelos, das mulheres. Também a guerra dos genes. A guerra da cautela e do ausente senso de premonição. Tranqüilos diante do fim. Um silêncio cada vez mais sentencioso invadia as janelas escancaradas. Um silêncio que era guardado no ardor de muitas discussões, de muitas gargantas, das rodas malucas e roucas a girar desordenadamente. Das rodas suspensas, desligadas das asas indomáveis do destino.

A presença do fim era sentida em silêncio. Num silêncio camuflado pela dor e pelos rancores acumulados não se sabe nem como, nem onde. Inúteis os porquês. Perdida nos escombros a origem de tal semente grandiosa. Ela estava sentada e imóvel. E eu sei que os seus olhos guardavam um amor muito puro. E eu sei que esse amor foi o resultado de muitas batalhas. Talvez todas elas perdidas. Até que, novamente, a voz. A voz maior do silêncio, a impor os seus atritos no ar sufocante de novembro. E ela, a refazer, com todo o cuidado, as glórias perdidas do passado já mencionado. Do passado que ainda não existiu. Projeções de um tempo desconhecido...

Explode uma granada: E ela deita, mecanicamente, ao lado dela mesma. E se põe a balançar em pensamentos incomunicáveis aos aposentos gelados. Os quartos não podiam entender a pureza do que ela sentia. Ela, que após tantos tumultos, resignara-se ao pior de todos os pesadelos. E suportava aquela calmaria assassina a tirar-lhe do corpo os últimos sopros de vida. E os quartos estavam muito gelados, apesar de todo aquele calor, que aumentara ainda mais depois da chuva. E ela esperava, incansavelmente, pela volta de seu passado. Mas ele não poderia voltar, pois o passado que ela criara ainda não tinha existido. Até que, então, o fim do mundo chegou. Mas ela não pode vê-lo, pois nesse instante, as luzes do sofá se apagaram. Era escuro, e ela já estava dormindo.

Um comentário:

biel madeira disse...

bem mais pequeno burguês... bem menos novo e mais fácil de ler... eu acho que essas coisas muito difíceis de ler, que fazem mal é que são as novas... acho que era assim que liam Mário de Andrade antes, com o mesmo fastio...
esse escrito é bem agudo, fala do mundo moderno, mas não é moderno na forma... é bem bonito, é melancólico...

uma obs: vc anda usando um pouquinho mais a palavra "amor", percebeu? (Gu)